12 Obras Fundamentais sobre a ação da Inquisição no Brasil Colonial
Envolta durante tanto tempo por mitos, a Inquisição, tribunal eclesiástico estabelecido pela Igreja Católica e que manteve fortes vínculos com as monarquias europeias durante a época moderna, foi alvo de diversos estudos a respeito de seu funcionamento e de suas vítimas. Alguns, inclusive, tornaram-se célebres, como “O Queijo e os Vermes”, escrito pelo italiano Carlo Ginzburg. Interessado em desvendar a relação entre a cultura popular e a erudita evidente no caso de um moleiro italiano que proferia visões e opiniões que contrariavam os preceitos do catolicismo, Ginzburg motivou inúmeros pesquisadores a percorrerem caminhos semelhantes em busca de respostas que as fontes documentais tradicionais não forneciam.
No Brasil, as análises sobre a ação da Inquisição na América portuguesa tiveram início com Varnhagen, considerado o precursor da historiografia nacional. Tendo crescido timidamente ao longo das décadas, o interesse dos pesquisadores brasileiros quanto ao tema se renova a partir dos anos 1980. Indo além da preocupação com os aspectos institucionais do Santo Ofício, os estudos, inspirados na história das mentalidades e na Micro-História italiana, empreendem análises revigoradas, trazendo à tona elementos até então pouco discutidos, como a sexualidade, a feitiçaria e a religiosidade popular. Desde então, o tema consolidou-se como um dos mais recorrentes entre os estudiosos do período colonial, resultando em obras de grande importância para compreensão da História do Brasil.
Confira a seguir uma lista de obras essenciais para quem quer saber mais sobre a atuação da Inquisição portuguesa em relação ao Brasil colonial:
1) VARNHAGEN, F. A. de. História Geral do Brasil: Antes da sua separação e Independência de Portugal. 10º ed., Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,1981.
Em seu livro, o autor traçou um valioso quadro a respeito da ação inquisitorial nas várias capitanias da América portuguesa, tendo publicado uma lista detalhada com os colonos condenados pela Inquisição de Lisboa. A partir de suas pesquisas, Varnhagen chamou a atenção para o número considerável de indivíduos sentenciados sob a acusação de judaísmo, concluindo ser este um dos principais alvos do tribunal. Os seus escritos, que ainda hoje orientam os que realizam investigações nos arquivos inquisitoriais, tiveram o mérito de abordar o tema de maneira sistemática pela primeira vez.
2) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira visitação do Santo Oficio às partes do Brasil : confissões da Bahia, 1591–92. Rio de Janeiro : Sociedade Capistrano de Abreu, 1935.
Capistrano de Abreu introduziu, em 1922, o conjunto de documentos produzidos pela Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil, esclarecendo muitos pontos sobre estas fontes. O seu esforço de compilar as informações sobre a Primeira Visitação, que por si só são de grande importância, resultou também em um rico prefácio, no qual discorre sobre a atuação do Tribunal no contexto da Primeira Visitação e sobre o agente inquisitorial responsável pela mesma, Heitor Mendonça Furtado.
3) NOVINSKI, Anita Waingort. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Ed. EDUSP/Perspectiva, 1972.
Escrevendo sobre os cristãos-novos na Bahia do século XVII e reconstruindo a trajetória de vários deles, a autora contesta a idéia de que o cristão-novo era essencialmente um judeu disfarçado de cristão, associando esta concepção à imagem que a Inquisição criou em relação a este grupo. Embora a autora não negue a ocorrência de casos de criptojudaísmo, ela sublinha que esta não era a única experiência religiosa dos cristãos-novos, de modo que muitos, mesmo sendo católicos há gerações acabaram perseguidos e condenados pelo Santo Ofício. O estudo de Novinski, juntamente com outras pesquisas desenvolvidas por ela ao longo de sua vida, constitui referência fundamental para a compreensão dos cristãos-novos e para a perseguição imposta a eles pela Inquisição.
4) SIQUEIRA, Sonia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ed. Ática, 1978.
Publicada no ano de 1978, esta obra constitui um importante estudo a respeito dos aspectos institucionais do Santo Ofício no Brasil. Baseando-se principalmente na documentação sobre as visitações às capitanias da Bahia e Pernambuco no século XVII, Siqueira volta a sua atenção para a estrutura que a Inquisição se valeu em sua atuação na América portuguesa, trazendo à tona elementos relevantes sobre o funcionamento do tribunal na colônia.
5) Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará: 1763/1769. Apresentação de José Roberto do Amaral Lapa. Petrópolis: Vozes, 1978.
Em 1978, Amaral Lapa publicou os registros referentes à visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará no século XVIII, fonte documental que foi decisiva para o crescimento de estudos referentes à ação inquisitorial na América portuguesa. Os documentos revelaram-se fundamentais para a compreensão da sociedade, política e cultura amazônicas no setecentos. Lapa chegou a caracterizar a presença inquisitorial na região amazônica como “oculta”, visto que, até então, não havia qualquer menção à atuação do Santo Ofício nesta área na historiografia. Além de reunir a documentação, o autor também refletiu sobre as razões do estabelecimento da Visitação, concluindo ser um desdobramento da política colonial pombalina, com grande atenção para o crescente relaxamento moral da população da região e uma forma de avaliar uma possível sobrevivência do poder exercido pelos jesuítas, abolido anos antes.
6) SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
A autora analisa as práticas mágico-religiosas e a religiosidade popular na América portuguesa, concluindo que, no âmbito colonial, crenças cristãs, judaicas, indígenas e africanas se entrelaçaram, dando origem a uma religiosidade especificamente colonial. Para tanto, Souza recorre a uma significativa variedade de fontes, dentre os quais se destacam os processos inquisitoriais, largamente utilizados pela historiadora em seu intento de reconstruir a mentalidade e o cotidiano dos indivíduos coloniais.
7) VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989.
Autor de diversos estudos célebres sobre a ação da Inquisição, Vainfas elaborou uma análise detalhada na qual busca entender a religiosidade desenvolvida na América portuguesa a partir do caso de indivíduos julgados pela Inquisição por manterem condutas sexuais assimiláveis a heresias, como sodomitas, bígamos e fornicários. Identificando a ação moralizante da Contrarreforma, que prezou pelo disciplinamento do corpo e da mente dos indivíduos a partir dos valores cristãos, Vainfas investiga a repressão inquisitorial às transgressões morais que contrariavam a doutrina católica. Ressaltando as especificidades da colonização e da heterogênea população da América portuguesa, o historiador sublinha as dificuldades enfrentadas pela Inquisição em seu intento moralizante, mas não deixa de reconhecer que a atuação da mesma deixou marcas profundas, seja pela fragmentação de identidades, pelo acirramento de preconceitos ou por culpabilizar consciências.
8) MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca. Unta santa africana no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993.
Dentre os diversos escritos de Luiz Mott a respeito da ação inquisitorial na América portuguesa, a obra que recupera a trajetória da africana Rosa Egipcíaca é das mais instigantes. Oriunda da Costa da Mina e vendida no Rio de Janeiro como escrava na primeira metade do século XVIII, Rosa Egipcíaca conheceu o duro cotidiano dos cativos na colônia por quase duas décadas, a maior parte do tempo como meretriz, até que delírios místicos e possessões mudassem a sua vida. Em Minas Gerais, onde então vivia, Rosa ganhou fama de santa e visionária, passando a usar os seus prodígios no dia a dia, atraindo inúmeros devotos. Como não poderia deixar de ser, a sua fama atraiu a atenção da justiça eclesiástica, o que fez com que se tornasse alvo da perseguição inquisitorial. O livro analisa de maneira precisa a religiosidade popular na América portuguesa, destacando ainda o comprometimento da Inquisição com a manutenção dos preceitos da doutrina católica.
9) GOMES, Plínio Freire. Um Herege vai ao Paraíso: Cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680–1744). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Em seu livro, Gomes analisa a vida e a cosmologia de Pedro Henequim, que foi condenado pela Inquisição em virtude de suas ideias e teses que contrariavam a doutrina católica. Investigando a trajetória deste indivíduo, o autor destaca o caráter multifacetado de sua formação religiosa, oscilando entre os ensinamentos do calvinismo e do catalocismo. Filho bastardo de pai protestante e mãe católica, Henequim foi criado pela família de um cônsul holandês, mas educado em um colégio jesuítico. Já adulto, foi parar na região das Minas Gerais no início do século XVIII, onde se deparou com uma realidade complexa, perpassada por várias línguas, costumes, crenças e gentes. A convivência neste ambiente tão heterogêneo imprimiu marcas profundas em suas idéias e concepções, somando-se ainda ao contato que teve com as idéias milenaristas do padre Antônio Vieira, difundidas na região por meio de manuscritos. Relacionando essa vida tão diversa à cosmologia desenvolvida por Pedro Henequim, a qual, dentre outras formulações, localizava o Paraíso no Brasil, onde teriam sido criados Adão e os anjos, o autor acompanha o processo inquisitorial, detectando assim os mecanismos pertinentes à ação do Santo Ofício.
10) FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste 1640–1750. São Paulo: Alameda, 2007.
O autor faz uma análise a respeito do funcionamento da máquina inquisitorial no nordeste da América portuguesa, sobretudo na capitania de Pernambuco. Com um enfoque institucional, Feitler dá grande atenção à estrutura do Santo Ofício ao longo dos séculos XVII e XVIII, bem como à atuação dos agentes inquisitoriais, elaborando uma investigação bastante acurada sobre o tema.
11) MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino. 1750–1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
Em seu estudo sobre a Visitação do Santo Ofício ao estado do Grão-Pará, no século XVIII, o autor aprofunda a análise pioneira de Amaral Lapa sobre o tema, investigando as razões que motivaram a visita. Preocupado com o funcionamento da Inquisição e as suas engrenagens institucionais, Mattos sublinha a vinculação da Visitação com o projeto pombalino em relação à região amazônica e chama a atenção para os laços existentes entre a administração colonial e o bispado do Grão-Pará, pontuando mecanismos complementares de controle.
12) CORRÊA, Luís Rafael Araújo. Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.
O autor recupera a vida do índio Miguel Pestana, condenado pela Inquisição portuguesa sob a acusação de feitiçaria na primeira metade do século XVIII. Utilizando a trajetória de Pestana como fio condutor, Corrêa analisa a formação religiosa deste indivíduo, que viveu boa parte de sua vida na aldeia jesuítica de Reritiba, no Espírito Santo. Atento à complexa relação mantida entre missionários e índios aldeados, o historiador ressalta as diversas interações sociais tecidas por Miguel Pestana com o mundo colonial, fato que leva o índio a questionar a disciplina regrada dos jesuítas e a ter contato com diversas práticas mágico-religiosas desviantes. A relação conturbada com os padres motiva Miguel a fugir de Reritiba e rumar para o Rio de Janeiro, onde transforma a sua vida: nas freguesias do Recôncavo da Guanabara, o índio ganha a confiança dos senhores locais e torna-se capitão do mato, alcançando uma posição social diferenciada em meio à hierarquia colonial. Em sua vida cotidiana, porém, as erronias perante à Igreja Católica se aprofundam: ele torna-se um afamado usuário de bolsas de mandinga, vendendo artigos mágicos aos que procuravam por sorte e proteção. Contudo, tendo atraído mais atenção do que devia, acaba preso pela Inquisição. Remontando o julgamento do índio, o autor traz à tona os meandros do processo e as insistentes estratégias do réu a fim de evitar sua condenação. Além de refletir sobre diversos aspectos pertinentes à religiosidade e à história indígena, a obra reflete a respeito da ação inquisitorial em relação aos indígenas, tema pouco estudado até hoje.