A Carta de Esperança Garcia e a Escravidão no Brasil Colonial

História em Rede
10 min readMar 7, 2024

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A carta escrita por Esperança Garcia, uma escrava que viveu no século XVIII no Brasil colonial, oferece uma rara e valiosa visão sobre as condições de vida das pessoas escravizadas na época. Por meio das palavras de Esperança, podemos compreender as dificuldades cotidianas enfrentadas pelos escravizados e a sua busca por justiça e humanidade. Mas quem foi esta mulher?

Esperança Garcia nasceu na fazenda Algodões, pertencente à Companhia de Jesus, e seu contato com a educação formal indica a influência dos padres jesuítas na sua formação. Contudo, a expulsão dos jesuítas em 1760 marcou um ponto de virada em sua vida, quando a fazenda foi incorporada à Coroa e passou a ser administrada pelo capitão Antônio Vieira do Couto. Eram novos tempos: com grande participação na administração do império português, o Marquês de Pombal adotou uma política notadamente anti-jesuítica, interessado em acabar com a opulência desfrutada pela ordem religiosa na América, o que considerava um Estado dentro do Estado. Essa mudança, obviamente, não impactou somente os inacianos. Ela teve implicações diretas na vida de Esperança. Alguns anos depois da fazenda ser arrematada, Esperança seria afastada da família e retirada da fazenda onde havia vivido até então. Forçada a trabalhar como cozinheira na casa do capitão Antônio Vieira do Couto, ela não se manteve calada.

Uma voz contra a Escravidão

No remoto dia 6 de setembro de 1770, nas entranhas do Piauí, uma história de coragem e resistência começou a ser escrita pela mão de Esperança Garcia, a jovem escravizada que contava 19 anos naquela altura. Ao redigir de próprio punho uma carta endereçada ao governador do Maranhão, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, ela desencadeou um ato ousado que transcenderia os séculos, tornando-se um testemunho singular da luta contra as mazelas da escravidão no Brasil colonial.

Esperança Garcia, já adulta e casada, viu sua vida tomar um rumo devastador quando foi separada do marido e filhos. Conduzida para a casa de seu senhor e dono da fazenda Algodões, ela foi destinada a trabalhar como cozinheira para o capitão Antônio Vieira de Couto. O desgosto de ser arrancada de sua família e levada para um novo ambiente, longe de seus entes queridos, moldou o contexto em que ela, por fim, decidiria erguer sua voz contra as injustiças que enfrentava.

“A Voz de Esperança Garcia”, HQ de João P. Luiz e Bernardo Aurélio sobre a escravizada

Em um ato de coragem e desafio, Esperança Garcia decidiu que era hora de se manifestar contra os maus tratos que sofria. No âmago de sua juventude, ela colocou suas palavras no papel, delineando as agruras da escravidão e denunciando as violências às quais era submetida diariamente. Sua carta, dirigida ao governador do Maranhão era um grito por justiça e também um apelo urgente pelo resgate que a possibilitaria reencontrar seus filhos e seu marido.

A denúncia de Esperança Garcia ao governador do Maranhão destaca os inconvenientes individuais que ela suportava e a luta mais ampla pela liberdade e pela reunificação de sua família. A separação forçada e as condições desfavoráveis a que estava submetida motivaram-na a buscar, por meio da escrita, a intervenção do governador para reverter sua situação.

A narrativa contida na carta de Esperança Garcia tornou-se um testemunho poderoso da resistência negra durante a era colonial. Seus escritos transcendem o tempo, lançando luz sobre as iniquidades do sistema escravista e a coragem individual que muitos escravizados demonstraram em face da adversidade.

Analisando a Carta

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sª. sua escrava Esperança Garcia”

A carta de Esperança Garcia nos revela a sua própria angustiante realidade, lançando ainda uma luz intensa sobre o cotidiano sombrio e implacável dos escravizados no Brasil colonial. A narrativa da escrava oferece uma visão penetrante e contundente das condições de vida adversas e da crueldade desenfreada que marcava a experiência diária dos cativos. Por meio das palavras de Esperança, podemos compreender as dificuldades cotidianas enfrentadas pelos escravizados, ao mesmo tempo em que contemplamos a sua busca por justiça e humanidade.

Esperança relata que, desde que o Capitão Antônio Vieira do Couto assumiu a administração, ela se tornou alvo de violência física. O relato de “grandes trovoadas de pancadas” destaca a frequência e a intensidade dos castigos infligidos aos escravizados. O fato de seu filho pequeno ter sido alvo de espancamentos, a ponto de extrair sangue pela boca, evidencia a brutalidade indiscriminada aplicada mesmo às crianças. Essa, aliás, é uma imagem visceral que transcende as palavras. Tal aspecto da narrativa desafia qualquer noção de compaixão ou humanidade por parte dos senhores de escravos. Ao expor detalhes tão dolorosos e chocantes, Esperança Garcia não apenas compartilha sua própria tragédia, mas também apela, de maneira urgente, à consciência do governador. Sua narrativa é um relato de sofrimento e uma súplica desesperada por intervenção e justiça em face da crueldade inescrupulosa que ela e seus pares enfrentavam diariamente.

“When the Slave Esperança Garcia Wrote a Letter”, versão em inglês e ilustrada da obra sobre Esperança escrita por Sonia Rosa

O uso da expressão “colchão de pancadas” por Esperança Garcia também chama a atenção. É uma metáfora brutal que revela a extensão da violência que ela suportava. Ao comparar-se a um objeto inanimado, Esperança descreve o sofrimento físico e expõe a despersonalização cruel imposta aos escravizados. A metáfora sugere que, aos olhos dos opressores, ela não era mais uma pessoa, mas sim um receptáculo para receber punições físicas. Essa desumanização vai além do mero aspecto físico, penetrando nas camadas mais profundas da dignidade e identidade pessoal de Esperança. Neste sentido, ao serem tratados como meros receptáculos de violência, os cativos eram despojados de sua humanidade, reduzidos a objetos de sofrimento físico e emocional. Essa perda de dignidade era uma consequência da violência física e uma estratégia cruel para reforçar a superioridade dos senhores.

O relato feito por Esperança Garcia sobre sua queda do sobrado adiciona uma dimensão angustiante à narrativa, revelando a brutalidade física enfrentada pelos escravizados e a precariedade constante de suas vidas. A descrição dessa queda, especialmente ao detalhar que ocorreu “peiada” (de cabeça para baixo), lança luz sobre a gravidade do incidente e oferece elementos profundos sobre as condições adversas enfrentadas pelos cativos. A queda do sobrado, mais do que um acidente isolado, é um reflexo da violência e precariedade inerentes à vida dos escravizados. Já a estrutura arquitetônica do sobrado, muitas vezes símbolo de poder e status, torna-se, neste contexto, uma ameaça iminente à segurança de Esperança.

“When the Slave Esperança Garcia Wrote a Letter”, versão em inglês e ilustrada da obra sobre Esperança escrita por Sonia Rosa

O relato da separação de Esperança Garcia de seu marido, além dos castigos físicos descritos na carta, revela ainda o tratamento cruel enfrentado pelos escravizados no Brasil colonial. O ato de separar Esperança de seu marido é uma grave privação de um ente querido e, ao mesmo tempo, uma violação profunda da estrutura familiar. Os laços familiares representam uma parte intrínseca da experiência humana, proporcionando apoio emocional, segurança e identidade. Ao romper deliberadamente esses laços, os senhores de escravos infligiam sofrimento individual e desmantelavam a estrutura básica que sustentava a resiliência e a identidade dos escravizados. Cabe destacar que a separação forçada de famílias era uma estratégia comum entre os senhores de escravos, visando a quebrar qualquer senso de coesão entre os cativos. Ao dividir esposos, pais e filhos, os senhores de escravos exerciam um controle psicológico profundo sobre seus cativos. A ausência de apoio emocional e a incerteza em relação ao destino dos entes queridos geravam um estado de desamparo que facilitava a submissão dos escravizados. A desintegração familiar causava um sofrimento imediato, tendo impactos duradouros na identidade e autoestima dos escravizados.

A impossibilidade de manter laços familiares sólidos minava a construção de uma identidade individual e coletiva robusta, fragmentando as fundações emocionais que normalmente sustentam a resiliência em meio à adversidade. Enquanto os castigos físicos eram visíveis e tangíveis, a separação familiar representava uma forma mais insidiosa de violência. Essa violência invisível desencadeava um sofrimento psicológico constante, alimentado pela incerteza do destino dos entes queridos, pela saudade infindável e pelo vazio emocional. A invisibilidade dessa forma de crueldade a tornava ainda mais insidiosa, pois não podia ser facilmente quantificada ou compreendida pelos observadores externos. É bem verdade, porém, que a desintegração familiar na narrativa de Esperança Garcia denota a brumas tambémtalidade do sistema escravista, ressalta a resistência e a esperança que os escravizados mantinham, apesar das adversidades. A busca por reencontrar o marido e os filhos, expressa na carta, é um ato de resistência contra a desumanização e uma afirmação da importância vital dos laços familiares na luta por uma existência mais digna.

“When the Slave Esperança Garcia Wrote a Letter”, versão em inglês e ilustrada da obra sobre Esperança escrita por Sonia Rosa

A carta de Esperança Garcia, ao pontuar a impossibilidade de praticar a religião, aponta ainda para a negligência de seu senhor para com a religião cristã. É importante observar que a cristianização era pressuposta aos subalternizados do império português e negar isso era um problema. Certamente, Esperança utilizou isto como um recurso argumentativo para convencer o governador a aderir a sua causa. Ainda assim, não podemos esquecer que a religião desempenhava um papel central na vida de muitos escravizados, proporcionando consolo, esperança e um senso de comunidade. As práticas religiosas ofereciam suporte espiritual, mas também representavam uma forma de resistência cultural, contribuindo para a perservação de tradições e identidades em meio à opressão. A negação dessas práticas representava, portanto, uma violação profunda da liberdade religiosa e uma estratégia para enfraquecer ainda mais os laços dos cativos.

A carta de Esperança Garcia, enfim, é uma peça fundamental para entendermos a realidade da escravidão no Brasil colonial. Ela denuncia as condições desumanas enfrentadas pelos escravizados, revelando ainda a busca por justiça e a resistência desses indivíduos. A história de Esperança Garcia é um testemunho corajoso que ressoa através dos séculos, convidando-nos a refletir sobre as complexidades e as injustiças do passado e a trabalhar para construir um futuro mais igualitário e justo.

Legado Documental

A carta de Esperança Garcia serve como um relato corajoso das condições de vida cruéis enfrentadas pelos escravizados no Brasil colonial, assumindo ainda uma dimensão histórica e jurídica notável. Juristas e historiadores brasileiros destacam que o documento pode ser categorizado como uma petição, apresentando elementos jurídicos fundamentais, incluindo endereçamento, identificação, narrativa dos fatos, fundamentação no Direito e um pedido claro.

A estrutura da carta revela uma organização que reflete a influência de elementos jurídicos. O endereçamento direto a Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, governador da capitania do Maranhão, denota uma tentativa consciente de buscar intervenção e justiça por meio das instâncias administrativas. A identificação de Esperança como escrava da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto estabelece seu status legal, enquanto a narrativa dos fatos descreve, de maneira eloquente, as injustiças e abusos sofridos.

Infelizmente, o desfecho da carta permanece desconhecido. Não há informações claras sobre se o apelo de Esperança foi atendido, se reencontrou sua família ou se experimentou alguma melhoria em suas condições de vida. Este silêncio histórico ressalta a complexidade e incerteza que muitos escravizados enfrentavam ao buscar justiça dentro de um sistema profundamente opressivo.

Em 1979, o historiador Luiz Mott localizou a carta nos arquivos públicos do estado do Piauí, elevando-a à posição de testemunha oculta de um passado doloroso. O reconhecimento da importância desse documento histórico ganhou força em 1999, quando o movimento negro piauiense, em resposta a reivindicações, conseguiu oficializar o dia 6 de setembro como o Dia Estadual da Consciência Negra, honrando a memória e a luta de Esperança Garcia.

Em 2017, dois séculos após a escrita da carta, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB-PI) publicou um importante estudo intitulado “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito”. Este documento ofereceu uma análise detalhada da carta e da vida de Esperança Garcia, contribuindo para uma compreensão mais profunda de sua luta por justiça.

No mesmo ano de 2017, a OAB-PI reconheceu oficialmente Esperança Garcia como a primeira mulher advogada piauiense, concedendo-lhe um reconhecimento póstumo. Esse gesto homenageou a coragem de Esperança e destacou o papel das mulheres negras na luta por direitos e justiça, muitas vezes negligenciado ao longo da história.

Está mais do que claro que a carta de Esperança Garcia transcende sua natureza inicial de apelo desesperado, emergindo como um documento histórico e jurídico significativo. Sua redescoberta, acompanhada por pesquisas e reconhecimento institucional, contribui para a construção de uma narrativa mais completa e justa sobre a história da escravidão no Brasil.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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