A Guerra de D. João contra os índios Botocudos: contexto e motivações

História em Rede
21 min readAug 16, 2019

Em 13 de maio de 1808, apenas dois meses após a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, o Príncipe-Regente D. João, por meio de uma Carta Régia, declara guerra aos índios botocudos. A justificativa era a resistência dos mesmos à civilização, visando assim pôr fim à selvageria e aos costumes antropofágicos desses nativos. No entanto, a rapidez com que o Príncipe-Regente age e o fato desta ser a primeira de uma série de providências complementares ou de natureza semelhante, chama a atenção para a necessidade de uma análise mais profunda do episódio. Neste artigo, buscaremos ir além do discurso oficial e identificar as razões principais que levaram o futuro D. João VI a tomar tais medidas. Para tanto, será fundamental identificar quem eram esses indígenas e entender o contexto da colônia e das áreas habitadas por eles no final do século XVIII e início do XIX, assim como analisar o avanço e os interesses dos colonos no chamado Sertão Leste.

O termo botocudo, ao contrário do que se pressupõe, não é, em sua essência, um grupo étnico, mas um exônimo. Em outras palavras, trata-se de uma designação genérica e cunhada pelos portugueses para referir-se a indígenas que tinham como prática usar peças de madeira nos lábios, os chamados botoques. Isso é facilmente verificado em descrições de diversos cronistas, que caracterizam tais indígenas por ter “o beiço inferior, e os lóbulos das orelhas furados, e onde engastam umas rodelas de madeira, que os tornam horrendos”. Os índios aimorés, também chamados de crens ou guerens, os primeiros a serem identificados por esta alcunha e os mais identificados por ela, habitavam a área que ia do vale do rio das Contas ao Jequitinhonha. Até meados do século XVIII, o que se vê nas fontes documentais são as nomenclaturas aimoré, cren ou gueren; a partir do referido momento, com as hostilizações desses índios aos assentamentos e explorações portuguesas em seus domínios, a denominação “botocudo” aparece ao sul do Jequitinhonha para identificá-los. Com a intensificação das investidas dos colonos no Sertão Leste de Minas Gerais, “botocudo” ganhou maior abrangência e passou a incluir diferentes grupos indígenas que entravam em contato com os portugueses, como Crenaques, Nacnuc, Nac-requés, Pancas, Manharigems, Incutera, que habitavam as margens de rios nas regiões de Minas Gerais e Espírito Santo. À medida que a imagem de selvagens, avessos à colonização e canibais tornava-se cada vez mais ligada a esse termo, ele passa a ser usado para fazer referência a qualquer grupo indígena que não estivesse subjugado aos portugueses. Assim, vê-se que essa identificação genérica não dá conta do complexo quadro étnico da região em questão, limitando uma análise mais precisa, de modo que a sua utilização apenas faz reproduzir o discurso do colonizador.

Não há dúvida, então, que para o melhor entendimento da questão que nos impõe, é imperativo resgatar a trajetória histórica desses grupos indígenas. Recorrendo a alguns trabalhos sobre o tema, podemos destacar o de Maria Hilda B. Paraíso, que fornece uma importante contribuição para nossa análise. Ela destaca que, após contatos violentos com os portugueses no primeiro século de colonização, em função de entradas promovidas pelos donatários das capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, os grupos indígenas conseguiram manter certo afastamento dos colonos. Segundo a autora, isto muito se deve ao fato de, entre os séculos XVII e XVIII, as capitanias mencionadas terem entrado em falência e acabaram revertidas ao controle régio. A Coroa, pouco interessada, praticamente não investiu nas mesmas; prova disso é o fato de que a derrubada de árvores destinadas ao suprimento de madeiras para a Armada Real foi das poucas atividades empreendidas. Isso fez da região um refúgio para os grupos indígenas que desejavam manter distância dos portugueses. Esse é um ponto, inclusive, que nos leva a refletir a respeito da grande variedade de etnias que habitavam a região; é bem provável que ela tenha sido alvo de migrações de grupos indígenas interessados em manter a integridade social e cultural frente à dominação colonial. A análise de Paraíso, no entanto, peca pelo fato de considerar este um refúgio praticamente indevassável durante os três primeiros quartos do século XVIII, em que o contato com os portugueses foi muito limitado e só se deu com a completa decadência da mineração. Como tentaremos mostrar a seguir, embora o avanço sobre a área tenha sido lento e limitado, há vários indícios que revelam expedições e interesses em relação a mesma ainda na primeira metade do século XVIII.

Para que isso fique mais claro, é preciso destacar que somado ao desinteresse da Coroa, um outro aspecto deve ser considerado na limitação ao avanço português sobre essas áreas. Havia uma clara intenção de, com o auge da mineração, preservar as minas. Visando inviabilizar o acesso sem controle a elas, a administração portuguesa converte as ditas capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo em uma zona tampão, uma clara estratégia para manter o controle sobre a região que despontava economicamente com a extração do ouro. Constituía-se então uma barreira natural entre as minas e a costa atlântica, o chamado Sertão Leste. Essa preocupação pode ser percebida em documentos que mencionam espaços a leste da capitania de Minas Gerais como proibidas de serem exploradas. Há um trecho de um correspondência de Diogo de Vasconcelos remetida a Luiz Cunha de Menezes, então governador de Minas Gerais, que expressa bem essa determinação: “Tendo presentes as suas cartas de 4 de Fevereiro, 3, 4 e 15 de Março, e vendo o que vossa mercê me diz na primeira em resposta a minha de 14 de Janeiro, e na segunda sobre o Sertão para a parte de Leste desta Capitania denominado Áreas Proibidas na hipótese de servirem os ditos Sertões de uma barreria natural a esta Capitania, para a segurança de sua fraude (...)”.

Sertão Leste (LANGFUR, Hal. The Forbidden Lands: Colonial Identity, Frontier Violence, and the Persistence of Brazil’s Eastern Indians, 1750–1830).

Entretanto, é preciso fazer ponderações quanto ao ponto levantado acima. No Aditamento ao Regimento de Minas de abril de 1702, o então governador de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade, determina que “querendo alguma pessoa povoar, ou lançar roças nas extremidades não povoadas deste Governo, o não possam fazer sem licença minha, ou de meus sucessores por escrito”. Embora houvesse tal determinação, proibindo qualquer tipo de exploração nessas áreas, isso não significou que a mesma tenha sido seguida ao pé da letra, até porque, com o tempo, ela passou a se chocar com o cada vez mais intenso desejo por ouro. Na carta citada anteriormente isso se comprova, visto que Diogo de Vasconcelos deixa bem clara sua posição sobre as áreas proibidas, afirmando não lhe parecer “útil aos interesses desta mesma Capitania [Minas Gerais] haver terras inúteis pela falta de se conhecer as utilidades que se poderão tirar das mesmas: tomei a Resolução de mandar fazer uma exatíssima averiguação nas mesmas pelo Sargento Maior Pedro Affonso Galvão de São Martinho”. Diante desse contexto, documentos da primeira metade do século XVIII já mencionam expedições com o objetivo de fazer o reconhecimento da região e identificar suas riquezas e potencialidades; além de menções aos indígenas que lá viviam, havia a séria suspeita de que existia ouro nessa porção da capitania. Muitas dessas expedições estavam diretamente ligadas ao governo da Capitania, que almejando encontrar mais ouro, as custeavam. No governo de André de Melo e Castro, já se tem notícia de uma bandeira realizada em 1734 por Matias Barboza nas proximidades do rio Doce em busca de novas jazidas. Fica evidente então que essa não era uma área completamente desconhecida e as suspeitas da existência de ouro atraiu várias explorações a mando de governadores, mas é de se supor também que tenha sido chamariz também de aventureiros em busca de oportunidades.

O historiador Hal Langfur, em um trabalho sobre as bandeiras em Minas Gerais neste período, acaba por embasar essa suspeita ao analisar inteligentemente a cartografia desta parte da Capitania ao longo do tempo, destacando dentre os mapas um anônimo que data da década de 1750. Nele se vê diversas informações a respeito da região e, o que chama mais atenção, a localização de povoados e assentamentos portugueses ao longo do Rio Doce, como Piranga, Peçanha e Antônio Dias Abaixo. Embora boa parte das terras continuasse desconhecida, já se percebe no mapa uma exploração em marcha; os assentamentos portugueses, embora não muito numerosos, indicam também um avanço progressivo de colonos sobre a área e que reforçam o fato de ser algo que já vinha acontecendo anos antes.

Esse quadro ganha novos contornos a partir da segunda metade do século XVIII, com a decadência da mineração. Por não se encontrar novas jazidas e em função da estagnação das tecnologias de extração, a economia mineradora entrou em uma crise aguda e sem retorno. No entanto, ao contrário do que se pensou por muito tempo, a economia mineira possuía dinamismo suficiente para superar esta situação. Como a recente historiografia tem demonstrado, desde o início do século XVIII produtores rurais se ficaram nos arredores dos centros urbanos da capitania e nas proximidades dos caminhos do ouro, visando dessa forma dar conta do abastecimento dessas localidades. Além desses, haviam também comerciantes ligados a diferentes casas comerciais que abasteciam a região por meio de uma grande variedade de gêneros. Assim, essas atividades, como bem destacou Claudia Maria das Graças Chaves em seu livro Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas, possibilitaram a formação de um mercado interno, resultando em uma crescente circulação de mercadorias no Centro-Sul do Brasil. Essa discussão remete, invariavelmente, ao texto clássico de Maria Odila Leite da Silva Dias, A Interiorização da Colônia. Rompendo com o exclusivismo comercial, a historiadora já destacava, antes da chegada da Corte ao Brasil, a existência de um mercado interno e o deslocamento e o estabelecimento de grupos comerciais no Centro-Sul, formando importantes redes comerciais de abastecimento para o Rio de Janeiro.

À medida que a mineração vai perdendo sua importância, as referidas redes comerciais de abastecimento passam a ser cada vez mais proeminentes em Minas Gerais. Com o deslocamento da capital do Brasil para o Rio de Janeiro, em 1763, o comércio se redireciona para o abastecimento do novo centro da colônia. Isso muito se deve ao fato da província fluminense passar por um significativo processo de desenvolvimento econômico, em função sobretudo da grande movimentação de pessoas e mercadorias que lá se verificava. O Caminho Novo, o trajeto percorrido pelo ouro até o Rio de Janeiro, converte-se também em uma fundamental rota comercial de abastecimento e integração entre as duas capitanias. O historiador Alcir Lenharo observou muito bem essas transformações, destacando que “quando a mineração entrou em crise, o movimento da estrada tendeu a inverter-se, passando o fluxo de mercadorias a orientar-se para o mercado carioca. Começaram a descer significativas quantidades de gado, porcos, galinhas, carneiros, toucinhos e queijos, além de outros gêneros de subsistência, tradicionalmente produzidos no Sul de Minas e em outras regiões mineiras afins”.

Tais considerações nos faz retornar a questão do avanço dos portugueses sobre o Sertão Leste. A crise da mineração, que como foi dito, tem na paralisação das descobertas de novas jazidas um de seus motivos, leva justamente a busca de novas fontes em lugares pouco explorados, o que seguramente incluiu a porção leste da capitania em função de suspeitas antigas de que houvesse ouro. Além disso, a importância cada vez maior de Minas Gerais como abastecedora do Rio de Janeiro vai demandando, tanto para a agricultura quanto para a pecuária, mais terras para essas atividades. É importante considerar também que porções significativas das terras a leste da capitania tinham ainda a vantagem de se situarem nos arredores do Caminho Novo, o que facilitava o acesso a uma rota comercial segura e consolidada ao Rio de Janeiro. Dessa forma, existiam razões de sobra para o interesse dos colonos por essas terras. Novamente, o trabalho de Hal Langfur nos é útil para confirmar essas suspeitas. Segundo um levantamento que fez, o historiador contabiliza, a partir da decadência da mineração, um envio cada vez mais intenso de expedições ao Sertão Leste: ao todo, entre 1765 e 1804, foram 64, e no período 1765-69 nada menos que 19 expedições foram enviadas para lá. A cartografia que ele se utiliza também reforça isso: em um mapa anônimo de 1767, é possível perceber um adentramento do sertão significativo e uma grande preocupação e demarcar áreas em que os botocudos estão presentes, anotando ainda a dificuldade de manter o assentamento de Cuité a salvo dos ataques dos nativos.

Tendo em vista esse contexto da segunda metade do século XVIII, as terras do Sertão Leste não ofereciam apenas oportunidades de expansão da agricultura e da pecuária ou de se buscar novas fontes auríferas, mas também caminhos para diversos pontos da colônia. Os grandes rios que cortavam a região atravessavam o Espírito Santo e a Bahia, fazendo com que a integração comercial de Minas Gerais não se desse apenas com o Rio de Janeiro, mas também com outras capitanias. Ou seja, os caminhos fluviais eram mais um fator que justificava o interesse e o avanço, já que para o comércio rotas como essas eram indispensáveis. Os rios tinham ainda a importância de servirem como rotas naturais, sendo uma via de acesso mais fácil e segura do que a terrestre, sujeita costumeiramente aos embates com indígenas. A grande relevância que tiveram para o estabelecimento de assentamentos portugueses pode ser visto no fato do povoamento ter se dado sempre ao longo desses rios. Para as capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo também significava uma alternativa econômica, pois com a utilização desses rios para o comércio, diferentes povoações poderiam tirar proveito disso através do suporte a tal atividade. Isso é facilmente verificável na Memoria Sobre a Conquista do Rio Pardo empreendida no ano de 1806, publicada na Gazeta da Bahia do mesmo ano. A integração entre diferentes regiões que o rio propiciava é visto quando, logo na introdução, se destaca “o rio Jequetinhonha, e a facilidade da comunicação de Minas com a Bahia pela navegação daquele rio”. A respeito do desenvolvimento econômico que essas rotas poderiam oferecer aos povoamentos ao longo do Jequetinhonha, é dito sobre “o projeto de se fazer no porto de Canavieiras um estabelecimento mercantil para fornecer aos navegantes do rio aqueles gêneros de que eles necessitam, e que podem permutar pelos produtos da sua lavoura sem o detrimento de demandar a cidade”.

Como vimos até agora, à medida que a mineração vai se esgotando e as atividades de abastecimento tornam-se fundamentais para Minas Gerais, as terras a leste da capitania passam a ser cobiçadas. No entanto, esse avanço está sujeito ao contato com os nativos que habitavam tais territórios, fazendo com que dois mundos entrassem em choque. Dessa forma, o devassamento do sertão não significava apenas uma conquista, mas o encontro com o outro. É essa alteridade chocante e ofensiva aos olhos dos portugueses que serve como justificativa para a expansão em direção ao leste; na visão etnocêntrica do colonizador, os costumes animalescos e primitivos desses indígenas passam a constituir uma ausência de civilidade, sendo então pressuposto para que a civilização fosse introduzida por eles aos “selvagens”, fazendo dessa uma fronteira em constante expansão. É importante então relacionar isso a política indigenista que vigorou por quase toda a segunda metade do século XVIII, o Diretório Pombalino. Promulgado em 1750, as leis visavam a incorporação dos indígenas à sociedade colonial por meio da civilização, objetivando com isso explorar a significativa população indígena para o povoamento de várias regiões. As determinações seguem claramente essa tendência, com destaque para o incentivo aos casamentos entre índios e brancos e a proibição dos costumes e do uso de idiomas nativos. Mas essas leis caracterizavam-se, sobretudo, pela ambiguidade, já que embora estimulasse métodos pacíficos para a civilização e integração desses índios, proibiam ataques e legitimavam guerras caso houvesse resistência. O que se pode perceber é que esse quadro configura-se como uma típica situação de fronteira. Entende-se aqui que a fronteira não se limita apenas ao aspecto territorial, mas ela é também social e cultural, marcada pela fluidez e por ser um espaço transicional e de interação, formado a partir das relações de contato entre dois mundos. Ela acaba por gerar espaços em interseção, que não pertence a qualquer um dos mundos e encontra-se em uma zona intermediária.

Nesse sentindo, a atuação de intérpretes indígenas, que foram peças fundamentais no avanço português sobre o Sertão Leste, são os melhores exemplos de indivíduos que se situam nesse espaço indefinido. Os chamados línguas são destacados na já referida Memoria Sobre a Conquista do Rio Pardo empreendida no ano de 1806: “Chegando a Tropa a referida Aldeia deram-lhe cerco, e mandaram o língua entrar nela levando alguns machados, foices, facas e anzóis, que se enviavam ao gentio, convidando-os a uma boa paz, e amizade, o que o tal intérprete fez com tal confiança e eficácia, que sem a menor resistência vieram todos aqueles Índios, não como bárbaros, receber a Tropa dos conquistadores por amigos, e recolhendo a todos em suas choupanas”. Esses são legitimamente homens de fronteira.

A Memória oferece ainda a oportunidade de perceber o que significava o botocudo no imaginário português. Antes de tudo, esses indígenas, inicialmente identificados por um traço físico, carregavam a forte imagem de selvagens, antropofágicos e avessos a civilização. As descrições dos mesmos costumam sempre aproxima-los de animais: “São tais estes selvagens, que nascendo perfeitos, e sendo em tudo a nós semelhantes, se fazem disformes, introduzindo no beiço de baixo e orelhas, umas grandes rodas de pau como que parecem animais horrendos”. Nos mesmos escritos, vê-se ainda a preocupação em distinguir os grupos indígenas com os quais o contato era mais pacífico e o nível de civilização segundo seus padrões eram superiores. Quando o autor, João Gonçalves da Costa, cita um episódio em que se depara com índios Mongoyos, isso pode ser percebido; ele menciona “que sem a menor resistência vieram todos aqueles Índios, não como bárbaros, receber a tropa dos conquistadores por amigos, e recolhendo a todos em suas choupanas os socorreram de mantimentos de suas roças”, sem se esquecer de destacar o maior grau de civilidade que apresentam, pois são os únicos “que vivem de cultivar a terra”. No decorrer da segunda metade do século XVIII, quando as incursões sobre as terras habitadas pelos indígenas passam a ser cada vez mais intensas, o estigma de botocudo, combinada com a visão etnocêntrica dos portugueses, passa a ser uma maneira eficaz de identificar grupos que ofereciam resistência, já que, no afã das leis pombalinas, justificaria o avanço sobre a região em nome de uma missão civilizatória para expurgar os costumes primitivos e selvagens dos nativos.

A resistência dos indígenas ao adentramento e a imposição cultural dos portugueses, fez com que os combates no sertão fossem cada vez mais constantes. Como Maria Hilda Paraíso percebe, a toponímia local é bastante reveladora nesse sentido: Batalha, Conquista, Sucesso, Vila Vitória... são fortes indicativos do quadro polvoroso que marcou esse espaço. Para promover o avanço sobre a região, os colonos passam a se organizar militarmente a fim de acabar com os botocudos que “infestam o sertão”. Desde o princípio, são organizados destacamentos com a função de favorecer a ocupação e defender os interesses comerciais que se estabeleciam. Isso pode ser visto no relato de Monsenhor Pizarro, que destaca que em um pequeno arraial em Cuieté habitavam “alguns negociantes de gêneros cultivados no mesmo país, e certo destacamento de pedestres, que tinham a seu cargo a Conquista, do Gentio Botocudo”. Com o tempo, toda uma estrutura militar foi se formando; o corpo militar se organizava em torno do presídio, o centro de decisões de uma dada divisão militar, que correspondia agir em um território específico, estando acima dos quartéis e dos destacamentos, que a ele se subordinam. Numa região conflituosa como essa tais corpos militares acumulavam grandes poderes, ainda mais em uma área em que verificava um vazio administrativo. Nos escritos de Monsenhor Pizarro se percebe tal poder, quando diz que D. Antonio de Noronha “foi ao lugar do presídio, com o intento de escolher sítio acomodado ao estabelecimento de uma povoação”.

Não apenas as terras do Sertão Leste eram cobiçadas pelos colonos, mas também braços indígenas. Os índios, que habitavam densamente a região, eram essenciais na abertura de pontes, estradas e caminhos, além de, quando se subjugavam aos portugueses ou se aliavam, serem muito úteis como força militar contra nativos mais arredios. Os aldeamentos eram uma estratégia importante de colocar grupos indígenas sobre o controle e impor sobre eles o trabalho compulsório. Quando a resistência levava a conflitos armados, muitas vezes deu-se a escravização dos prisioneiros de guerra. Na Memória Sobre a Conquista do Rio Pardo, há uma passagem que expressa isso muito bem, destacando a utilização dos indígenas na abertura das estradas e no combate aos botocudos: “Fica sendo finalmente mais conveniente a abertura desta estrada que inculco se o referido rio for inteiramente navegável, porque a borda dele se pode formar uma grande Povoação de todos os Índios conquistados da nação Mongoyos dando-se-lhes Pároco, que os doutrine, e Diretor que os dirija com o que podem ser mais úteis a si mesmo, e ao Comércio; e estando por semelhante modo unidos e disciplinados ajudarão, como já agora ajudaram a bater os bárbaros Botocudos que povoam as matas nos continentes da costa do mar”. O que se vê no trecho também é que novamente o fator civilizacional aparece como justificava essa prática. Em 1798, uma Carta Régia determina o fim do Diretório, o que favorece ainda mais a utilização da mão-de-obra dos nativos de forma compulsória. Embora a legislação do Diretório fosse ambígua, era evidente que ela buscava acabar com as separações entre brancos e indígenas e que, mediante a civilização, os índios e seus descendentes era, segundo a própria, “hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade”. Embora essa fosse uma igualdade formal, ainda assim era um direito. Mas o fim do Diretório teve outras implicações importantes; entre elas o fim do direito dos indígenas de venderem sua força de trabalho livremente. Esse era um reforço e tanto para os colonos portugueses, visto que passa a ver um vazio quanto a política indigenista; isso favoreceu, e muito, a imposição do trabalho compulsório e mesmo a escravização aos indígenas. A Carta Régia de 1798 é marcante também por ser a primeira determinação da Coroa quanto a essa situação.

A partir de então, a Coroa passa a atentar cada vez mais para o avanço sobre a região e aos interesses dos colonos. Após a Carta de 1798, a distribuição de sesmarias às margens dos rios passa a ser permitida como se vê no Edital emitido em março de 1801, complementada, em maio do mesmo ano por uma Carta Régia que ordenava a distribuição de destacamentos nas áreas em que os botocudos se faziam presentes. Essas são medidas claras no sentido de favorecer o avanço sobre a região e a dominação sobre os indígenas. O curioso é que essas medidas começam a ser tomadas paralelamente ao conturbado contexto europeu, em que Portugal, ameaçado e encurralado, passa a ver a hipótese da vinda da Corte para o Brasil como uma possível alternativa para o momento crítico. Fica aqui a suspeita de que, na iminência de uma vinda para a colônia, a integração das várias partes do Brasil fosse algo imprescindível, como de fato foi, para a instalação da capital do Império na colônia. As problemáticas da expansão da fronteira e das hostilizações dos botocudos é constante não só entre os colonos, mas também dos governadores da capitania. Essa preocupação pode ser vista na ata de uma reunião que ocorreu em Vila Rica, em 1806, reunindo, dentre outras autoridades, o governador de Minas Gerais, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello: “Cansado e horrorizado de ouvir o grito dos miseráveis povos, que confrontam com a matta geral e aquém do Rio Doce no termo da Cidade Mariana, pela carnagem brava, e insaciável com que tem sido atacados, mortos e devorados pelo bárbaro antropófago gentio Botocudo, sendo obrigados a abandonar fazendas de cultura, e mineração, depois já de cultivados a preço de se seu trabalho”.

O que estamos tentando mostrar desde o princípio é que a Carta Régia promulgada pelo Príncipe-Regente em 1808, advém de um processo que está em marcha desde o século XVIII. O que a Carta exprime então em grande medida é a institucionalização de algo que já vinha ocorrendo, com a Coroa tomando as rédeas do movimento e definitivamente o partido dos colonos na expansão e conquista dessas terras de forma direta. Analisando a Carta, isso fica muito mais evidente; no trecho: “ordenar-vos em primeiro Lugar que desde o momento que receberdes esta Minha Carta Régia deveis considerar como principiada contra estes Índios e Antropófagos [botocudos], uma Guerra ofensiva que continuareis sempre em todos os anos nas estações secas e que não terá fim, senão quando tiveres a felicidade de vos senhorear de suas habitações, e de os capacitar da superioridade de Minhas Reais Armas, de maneira tal, que movidos do justo terror das mesmas peçam a Paz”.

Determina-se uma guerra ofensiva aos botocudos, a fim de, como bem já faziam os colonos de forma independente, “desinfestar” esses indígenas dos territórios por onde avançavam. Quando diz “sou servido ordenar-vos que formeis logo um corpo de soldados pedestres escolhidos e comandados pelos mesmos hábeis comandantes que vós em parte propusestes e que vão nomeados nesta mesma Carta Régia, os quais terão o mesmo soldo que o dos soldados infantes; e sendo índios domésticos, poderá diminuir-se o soldo a 40 réis, como se faz na guarnição dos Presídios dos Barretos e da Serra de S. João”, há uma demonstração clara de apoio ao avanço dos colonos. Isso porque o Príncipe-Regente passa a patrocinar e remunerar tropas de combate aos botocudos. Trata-se ainda da institucionalização de um movimento que já vinha ocorrendo, evidente no fato de D. João adotar práticas já utilizados antes de sua determinação, como o pagamento de um soldo menor a soldados que sejam índios, e como vimos no trecho de Monsenhor Pizarro, a formação de uma força militar que já havia equivalente. As determinações também favorecem a utilização dos indígenas como mão-de-obra escrava ou compulsória, já que preveem que podem ser escravizados e obrigados ao trabalho como forma de atingir a civilização: “Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Índios Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e que sejam entregues para o serviço do respectivo comandante por dez anos, e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo ele emprega-los em seu serviço particular durante esse tempo e conserva-los com a devida segurança, mesmo em ferros, enquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e antropofagia”.

A Carta não deixa de estar atenta também para a importância dos rios como rotas de comércio, ao buscar “estabelecer para o futuro a navegação do Rio Doce, que faça a felicidade dessa Capitania, e desejando igualmente procurar, com a maior economia da minha Real Fazenda, meios para tão saudável empresa” e a sempre esperança de se encontrar ouro na região, ao “favorecer os que quiserem ir povoar aqueles preciosos terrenos auríferos”. Não resta a menor dúvida de que tais medidas estão afinadas com os tradicionais interesses dos colonos em relação a região e mesmo da Coroa. Para dar cabo de tão ambicioso empreendimento, D. João determina a criação da Junta de Civilização e Conquista dos Índios e Navegação do Rio Doce, em uma estrutura militar que aproveita grande parte da que já havia, separando “em seis distritos, ou partes, todo o terreno infestado pelos Índios Botocudos, nomeando seis Comandantes destes terrenos, a quem ficará encarregada pela maneira que lhes parecer mais profícua, a guerra ofensiva que convém fazer aos Índios Botocudos”. Como se vê então, a Carta Régia de 1808 foi a culminação de uma política régia que já vinha se processando desde o fim do século XVIII. Ela não foi uma ação isolada e descontextualizada, mas fruto de uma gama de interesses dos colonos e da própria Coroa, bem como de pressões dos mesmos colonos e, posteriormente, das próprias autoridades coloniais.

Mas uma questão ainda se impõe: mesmo diante desse contexto, o que levou D. João a agir de forma tão rápida e definitiva, demonstrando então tanta sintonia e preocupação com essa situação? Para responder a isso, dois pontos fundamentais devem ser considerados. O primeiro deles é que, estando no Brasil, a questão indígena não está mais distante e situada do outro lado do Atlântico. Agora essa é uma realidade muito presente para a família real, já que se instalam em um lugar onde não apenas abundam negros, mas onde também estão indígenas com a fama de selvagens, arredios a civilização e, o que é pior, antropofágicos. Tendo isso em vista, se o grande número de negros e a escravidão configuram-se com uma novidade para a família real no Brasil, os nativos e as relações que se desenvolverão com os mesmos também constituem-se como uma situação inédita com o qual se deparam.

O outro, muito bem discutido pela historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra em sua obra A utopia do poderoso império - Portugal e Brasil: bastidores da política: 1798-1822, é a necessidade de integrar as várias regiões e capitanias do Brasil, sendo esse um requisito fundamental para que a colônia fosse a sede do Império. Para tanto, era preciso dominar as terras e acabar com as hostilizações de determinados indígenas, um grande obstáculo. Isso é comprovado não só pela Carta de Maio de 1808, que decreta a guerra aos Botocudos, mas também por outras de natureza semelhante, como a decretação de guerra contra os bugres da capitania de São Paulo, na Carta Régia de 5 de novembro de 1808 e contra os índios de Guarapuava, na Carta Régia de 1 de abril de 1809. Tipicamente, a justificativa é sempre pautada nos ataques gratuitos e na resistência a civilização, como pode se ver na decretação de guerra aos índios de Guarapuava: “Não é conforme aos meus princípios religiosos e políticos o querer estabelecer minha autoridade nos Campos de Guarapuava e território adjacente por meio de mortandades e crueldades contra os índios, extirpando as suas raças, que antes desejo adiantar, por meio da religião e da civilização, até para não ficarem desertos tão dilatados e imensos sertões, e que só desejo usar da força com aqueles que ofendem meus vassalos, e que resistem aos brandos meios de civilização que lhes mando oferecer”. Havia, porém, interesses específicos que iam muito além da alteridade ou da ferocidade indígena.

Assim, a integração estava sujeita a conquista sobre os indígenas e a ação não poderia ter começado por outros que não fossem os botocudos, não apenas por seu estigma, mas por entravarem uma região tão importante para a integração do Brasil e para o abastecimento do Rio de Janeiro, então sede da capital do Império.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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