A Heresia e o Abacaxi: um episódio da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil

História em Rede
4 min readDec 26, 2023

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No contexto efervescente do século XVI, marcado pela expansão colonial portuguesa na América, a Primeira Visitação do Santo Ofício emerge como um capítulo fundamental na história do controle religioso e comportamental em terras brasílicas. Inaugurada em 1591, essa iniciativa refletiu não apenas a necessidade de consolidar a presença da Inquisição em terras distantes da metrópole, mas também o desejo de salvaguardar a ortodoxia católica em meio à diversidade cultural e religiosa que crescia nos domínios americanos.

A missão da visita inquisitorial consistia em examinar de maneira detalhada as comunidades locais, avaliando não apenas questões religiosas formais, mas também a influência da cultura e das tradições locais sobre a prática da fé. O desafio de manter a ortodoxia católica em um contexto colonial, onde diferentes culturas e crenças coexistiam, requeria uma abordagem cuidadosa e adaptada à realidade específica da América portuguesa. Em tal cenário, a Primeira Visitação se configurou como uma resposta direta a essa necessidade premente de afirmação e controle.

O visitador nomeado, Heitor Furtado de Mendonça, seguiu à risca a liturgia inquisitorial. A população de Salvador e das proximidades foi convocada a participar de um cerimonial marcado pela exaltação ao Santo Ofício. Em seguida, as pessoas foram incentivadas a apresentar confissões e denúncias que atentassem contra os dogmas católicos. O palco estava armado. Durante a visitação, foram conduzidas inúmeras inquirições e investigações, analisando-se minuciosamente práticas religiosas e atitudes individuais. Esse escrutínio abrangente não apenas buscava identificar eventuais desvios doutrinários, mas também pretendia moldar a vida cotidiana das comunidades de acordo com os princípios estabelecidos pela Igreja Católica.

Um caso singular, ocorrido em Pirajá, na capitania da Bahia, ilustra a intrusão da Inquisição no dia a dia dos colonos, revelando o controle rigoroso exercido sobre a religiosidade e os comportamentos alheios. A protagonista deste episódio era uma mulher chamada Catarina Fernandes, de aproximadamente 30 anos, proveniente de Portugal e que havia sido degredada para o Brasil após ter se envolvido em um homicídio. Instada a se manifestar perante o Visitador naquele ano de 1591, Catarina revelou no dia 9 de agosto que cerca de um ano e meio antes, em uma manhã do dia dedicado a Nossa Senhora da Conceição, ela se confessou ao padre Pantaleão Gonçalves e recebeu dele o Santíssimo Sacramento. O que tinha tudo para ser uma mera rotina religiosa, porém, converteu-se em uma situação insólita. Ao retornar para casa, Catarina foi confrontada pelo marido, que recordou que ela havia comido uma talhada de abacaxis antes de comungar. As cascas da fruta que ela avistou logo em seguida não deixaram qualquer dúvida sobre a refeição matinal. Arrependida, Catarina fez uma nova confissão, desta vez com um padre da Companhia de Jesus. O jesuíta impôs penitências severas, incluindo quinze dias de cilício, cinco rezas do rosário e da coroa de Nossa Senhora, além de três sábados de jejum a pão e água. Catarina cumpriu tudo sem pestanejar.

Para o inquisidor, atento a casos de relaxamento da fé e de práticas desviantes, a explicação de mero esquecimento não bastava. Era preciso garantir não se tratar de uma heresia por parte de Catarina. Por isso, imerso no clima da Contrarreforma, o visitador Heitor Furtado de Mendonça suspeitou que estivesse diante de uma situação de negação da transubstanciação, doutrina que crê que o pão e o vinho convertem-se em corpo e sangue de Jesus Cristo no ato da Consagração. Isso poderia explicar a conduta displicente da mulher perante o sacramento da Eucaristia. Após o inquisidor submeter Catarina a um longo interrogatório sobre a questão, desconfiando que ela estaria negando a doutrina por ser adepta ao protestantismo, ela afirma "que nunca esteve em terra de luteranos, nem tratou com eles e que sabia muito bem que se há de comungar em jejum e que a isso estava obrigada".

Ainda sem ter se convencido, Heitor Mendonça mantém a desconfiança sobre a atitude de Catarina, insistindo com sua inquirição. A persistência do visitador em questionar a mulher, aliás, é digna de nota, revelando a meticulosidade com que o Santo Ofício zelava pela ortodoxia. Por fim, a mulher apresentou uma explicação peculiar para o inusitado esquecimento de ter comido abacaxi: a cólera e os dissabores contra o marido, com quem havia brigado pouco antes, teriam obscurecido sua memória. Sem mais, ela foi liberada. Mas o medo de um possível processo inquisitorial certamente a acompanhou.

Este episódio exemplifica a rigidez do controle inquisitorial sobre as vidas das pessoas na América portuguesa, onde até mesmo o ato de comer abacaxis tornou-se objeto de escrutínio. A Inquisição, ao buscar assegurar a conformidade estrita com os dogmas estabelecidos pela Igreja Católica, acabou por penetrar nas esferas mais íntimas da existência dos indivíduos, incidindo sobre a religiosidade e o comportamento da sociedade da época.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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