A Primeira Guerra Mundial nas páginas de uma publicação infantil brasileira #1

História em Rede
6 min readAug 6, 2024

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A Primeira Guerra Mundial, um dos conflitos mais devastadores do século XX, teve um impacto profundo não apenas nos campos de batalha, mas também nas culturas e sociedades das nações envolvidas. Antes do confronto, a guerra muitas vezes era romantizada nas narrativas, sendo retratada como uma aventura heróica e uma oportunidade de demonstrar bravura. Com o início da guerra, porém, a escala e a brutalidade do conflito apresentaram desafios únicos para a representação da guerra, especialmente em materiais voltados para o público infantil. O conflito marcou um ponto de inflexão na maneira como a guerra era retratada nas mídias destinadas ao público infantil. Em diferentes mídias, representações da guerra voltadas para crianças foram usadas como ferramentas de propaganda, estimulando o patriotismo e justificando o esforço de guerra entre os jovens. A guerra, definitivamente, não era algo apenas de gente grande.

Guerra para Crianças

Quando falamos do público infantil, é impossível não remeter a brinquedos e jogos. Durante a guerra, os itens lúdicos se tornaram ferramentas poderosas para educar, entreter e, em muitos casos, doutrinar crianças sobre o conflito. Esses objetos, obviamente, refletiam as atitudes culturais da época e serviam como uma extensão do esforço de propaganda voltado para as gerações mais jovens. Mais do que diversão, os brinquedos infantis se prestaram a preparar as crianças para aceitar a guerra como uma realidade inevitável.

Soldadinhos de chumbo eram comuns em muitos países europeus antes da guerra, mas sua popularidade cresceu significativamente durante o conflito. Na Alemanha, Grã-Bretanha e França, esses brinquedos eram produzidos em massa e frequentemente representavam soldados de suas respectivas nações. Em muitos casos, os brinquedos eram modelados após figuras militares reais, como generais famosos ou tipos específicos de unidades, como a infantaria, a cavalaria ou a artilharia. Jogos de tabuleiro e quebra-cabeças também carregaram o conteúdo bélico que marcou o início do século XX. A Grande Guerra foi projetada em diferentes jogos, aproximando o conflito do público infanto-juvenil. Tais itens eram projetados para educar os jogadores sobre as diferentes fases do conflito, como a mobilização das tropas, a logística de suprimentos e a importância da moral das tropas. Alguns jogos, inclusive, incentivavam a tomada de decisões, características que eram valorizadas em uma época onde o serviço militar era visto como um futuro possível para muitos jovens.

A literatura infantil, por sua vez, foi um dos principais veículos de propaganda quanto a formação das percepções das crianças sobre o conflito. Boa parte dos conteúdos infantis escritos durante a Primeira Guerra Mundial evitavam uma representação realista do conflito, preferindo glorificar a guerra e seus participantes. Nessas histórias, a guerra era apresentada como uma oportunidade para demonstrar bravura e patriotismo. No geral, tal literatura era carregada de forte senso de dever cívico, apresentando a guerra como uma luta necessária contra o mal. Os escritos também serviam para motivar os jovens leitores a apoiar o esforço de guerra, seja economizando recursos, comprando títulos de guerra, ou até mesmo incentivando seus pais e irmãos mais velhos a se alistarem. A narrativa era clara: participar da guerra, de qualquer forma, era um dever moral.

“Histoire d’un brave petit soldat” (1915), de Charlotte Schaller-Mouillot, é um dos livros que difundiam a guerra para crianças francesas
“Alphabet de la Grande Guerre 1914–1916", de André Hellé, foi o principal livro de alfabetização francês durante a Primeira Guerra Mundial

Os quadrinhos, que já vinham ganhando popularidade desde o final do século XIX, tornaram-se também uma das principais ferramentas de difusão de valores ligados à guerra. Esses meios visuais tinham a capacidade de comunicar mensagens complexas de maneira acessível, tornando-os ideais para disseminar mensagens, reforçar ideais patrióticos e, ao mesmo tempo, fornecer entretenimento. Nas páginas destas publicações populares, a guerra era retratada de maneira simplificada, muitas vezes ignorando as realidades brutais do conflito em favor de narrativas de aventura, heroísmo e vilania. A guerra era, então, glorificada para as crianças, preparando-as para um mundo onde o conflito era visto como inevitável e até mesmo necessário. Além de refletirem diferentes culturas e ideologias dos países envolvidos de acordo com a nacionalidade das publicações, as representações ofereciam uma visão pertinente de como a Primeira Guerra Mundial foi internalizada pelas gerações mais jovens.

“The Boy’s Own Paper”, publicação infanto-juvenil britânica
“Le Petit Journal”, publicação infanto-juvenil francesa

A Grande Guerra em “O Tico-Tico”

O periódico O Tico-Tico, lançado em 1905, foi a primeira publicação exclusivamente infantil do Brasil e rapidamente se estabeleceu como uma leitura essencial para as crianças brasileiras ao longo das primeiras décadas do século XX. Publicado pela editora O Malho, O Tico-Tico foi inspirado em revistas infantis europeias, especialmente as francesas, e alcanlou posição de destaque na cultura brasileira da Primeira República.

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), a revista refletiu e adaptou a realidade do conflito global para o público jovem, oferecendo uma combinação de entretenimento, educação e informação em suas páginas. Durante a Grande Guerra, o Brasil, embora neutro até 1917, quando declarou guerra à Alemanha, estava imerso em um ambiente de intenso debate sobre o conflito europeu. Esse contexto afetou diretamente aa histórias e quadrinhos apresentados em O Tico-Tico, mergulhando a publicação no clima do conflito que afligia a Europa. A abordagem procurava equilibrar notícias simplificadas sobre a guerra, apresentadas de maneira que as crianças pudessem compreender, e o conteúdo patriótico que moveu as nações para o confronto. Justamente por isso, o horror do conflito cedia lugar a um tom leve, aproximando a guerra dos leitores e tornando-a lúdica. Por meio de quadrinhos, ilustrações e lições, a Primeira Guerra Mundial parecia ser um tipo de brincadeira que os adultos praticavam.

No primeiro artigo da nossa seção A Grande Guerra em O Tico-Tico, acompanhe como os exércitos dos países envolvidos nos primeiros momentos do conflito foram apresentados em 1914 por Chiquinho, um dos personagens mais populares do periódico. Ele ficou responsável por introduzir as forças militares aos leitores infantis. Longe de ser uma matança generalizada, a guerra em O Tico-Tico ganhava ares de uma grande competição aos olhos infantis. Contando com um ilustre soldado mirim nas páginas da revista, a guerra estava mais próxima do que nunca das crianças brasileiras.

Tropa da Alemanha, com suas formações, armas e símbolos
Tropa da Áustria-Hungria, com suas formações, armas e símbolos
Tropa da Bélgica, com suas formações, armas e símbolos
Tropa da França, com suas formações, armas e símbolos
Tropa Auxiliares da França, reunindo soldados das áreas coloniais, com suas formações, armas e símbolos

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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