As Vilas que Morreram pela França na Grande Guerra

História em Rede
10 min readFeb 14, 2024

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A Batalha de Verdun, travada entre fevereiro e dezembro de 1916, foi um dos conflitos mais sangrentos da Primeira Guerra Mundial. Enquanto os horrores da guerra são frequentemente destacados, as vilas que foram arrastadas para este combate, um forçado cenário de guerra, muitas vezes são esquecidas. Este artigo explora a conexão entre as vilas que pereceram pela França em Verdun e o conceito de Memória Histórica.

Em 21 de fevereiro de 1916, o exército alemão lançou mais de um milhão de bombas ao longo de uma cordilheira em Lorena, leste da França. Não parou por aí. O local continuou sendo intensamente bombardeado. O ataque alemão em 21 de fevereiro de 1916 foi seguido por um contra-ataque francês, resultando em uma intensa disputa que se arrastou por 10 meses em uma área de 80 km². A batalha terminou em 18 de dezembro de 1916, restabelecendo as linhas de frente e dando à França uma vitória significativa. Mas não foi só. A ação resultou na completa destruição de nove vilas que se estendiam pela localidade. De forma brutal, a batalha deixou mais de 300.000 soldados franceses e alemães mortos. O grandioso combate em Verdun se tornou emblemático na Primeira Guerra Mundial, sendo frequentemente lembrado pelo heroísmo e pela magnitude militar. Não há dúvidas, porém, que isto obscureceu outras memórias do conflito. Foi o caso das comunidades arrasadas pela guerra.

As nove vilas martirizadas nunca foram reconstruídas, embora mantenham até hoje o status de municipalidade. Beaumont-en-Verdunois, Bezonvaux, Cumières-le-Mort-Homme, Douaumont, Fleury-devant-Douaumont, Haumont-près-Samogneux, Louvemont-Côte-du-Poivre, Ornes e Vaux-devant-Damloup encontram-se na denominada “Zona Vermelha”. Esta zona abrange extensos 120.000 hectares de campos de batalha na França, onde atividades são proibidas pela legislação vigente, devido à presença de restos mortais, munições e danos substanciais à paisagem. As trilhas existentes conduzem a vestígios de residências destruídas e espaços que revelam atividades e profissões do passado. Estas vilas desoladas servem como símbolos, onde capelas e memoriais legam impressão emocionalmente comovente. Atualmente, as vilas arruinadas ostentam a designação de monumentos históricos, e seus nove municípios são membros da Communauté d’agglomération du Grand Verdun.

Após o término da Grande Guerra em 1918, as autoridades francesas deliberaram sobre a impraticabilidade e o elevado custo de reabilitação de aproximadamente 1.200 km² de terras nas proximidades de Verdun. Em 1919, o governo adquiriu o terreno e deliberou que as vilas seriam transformadas em monumentos em tributo aos sacrifícios durante a Grande Guerra. A fim de garantir a manutenção física e zelar pela memória, elas foram providas de um prefeito e dois conselheiros, mantendo código postal, identidade jurídica e administrativa, mas sem qualquer perspectiva de habitabilidade ou reconstrução. Cada vila abrigaria ainda um memorial de guerra e uma pequena capela, erigida sobre ou próxima às ruínas da igreja original. Por fim, todas foram oficialmente designadas como “mortas pela França”.

A TRAGÉDIA DESDOBRADA NAS VILAS

As ruínas dessas vilas são testemunhas físicas das atrocidades vivenciadas durante a Grande Guerra. Cada pedra deslocada, cada parede desmoronada, conta uma história silenciosa de um passado marcado pelo conflito. A preservação dessas ruínas não é apenas uma questão de conservação arquitetônica, mas um esforço para manter intacta a autenticidade do sofrimento humano, gravado nas estruturas que resistiram à tempestade da guerra.

Fleury-devant-Douaumont, uma próspera comunidade agrícola, viu seus campos transformarem-se em campos de batalha sangrentos. Onde antes crianças brincavam, agora reinava o caos. Os lares acolhedores foram reduzidas a escombros. A arquitetura pitoresca da vila foi eclipsada pelo estrondo dos canhões e pela violência da guerra de trincheiras. História de famílias que se despedaçaram junto com as construções. Já a igreja local, outrora o coração espiritual da comunidade, tornou-se um ícone de desolação. Seus destroços testemunham tanto a destruição física quanto a quebra de um tecido social que unia a comunidade. A vida religiosa que uma vez pululou dentro das paredes da igreja foi silenciada pelo estrondo dos bombardeios.

Cumières-le-Mort-Homme, cujo próprio nome reflete a brutalidade da guerra, enfrentou um destino igualmente sombrio. Situada estrategicamente, a vila suportou um feroz cerco, e suas estruturas foram engolidas pelo caos das trincheiras. A vila, que antes testemunhava a vida cotidiana, agora assistia ao sofrimento humano.

Bezonvaux, outra vila sacrificada, viu seus edifícios centenários cederem sob a fúria dos conflitos. Uma comunidade vibrante que tornou-se espectro da antiga glória. Suas ruas estreitas foram apagadas, e suas casas foram substituídas por escombros e lembranças desbotadas.

Beaumont, com sua paisagem pitoresca, também não escapou da cruel dança da guerra. As colinas verdejantes foram transformadas em campos de terra revolvida, marcados por crateras de bombas que ecoavam a destruição impiedosa. Vivências pessoais se perderam nas trincheiras, enquanto os habitantes dessas vilas enfrentavam uma realidade cruel e impensável. Os campos, uma vez cultivados, agora eram palcos de horror, onde a lama misturava-se com o sangue dos que ousaram resistir.

Ornes, Louvemont-Côte-du-Poivre e Haumont-près-Samogneux, também vítimas da Batalha de Verdun, compartilham destinos similares. Haumont-près-Samogneux, uma vez aninhada entre colinas, viu suas paisagens transformadas em um cenário apocalíptico. Louvemont-Côte-du-Poivre, com suas ruínas, é um testemunho silencioso da ferocidade do conflito. Ornes, por sua vez, enfrentou uma metamorfose indesejada, com vielas estreitas transformadas em trincheiras mortais.

A tragédia nessas vilas vitimadas por Verdun é um lembrete brutal da fragilidade da vida humana em tempos de guerra. Cada rua, casa e praça carrega as cicatrizes dessa época sombria. A devastação não foi apenas física; foi uma ferida profunda na alma dessas comunidades, uma ferida que ainda se faz sentir nos relatos passados de geração em geração. Preservar a memória dessas vilas é mais do que simplesmente conservar ruínas; é uma tentativa de dignificar as vidas que foram perdidas e as histórias que foram sufocadas.

O PAPEL DA MEMÓRIA COLETIVA

A Memória Coletiva emerge como um farol luminoso que ilumina os recantos mais sombrios da história, e seu papel assume uma dimensão singular quando voltamos nosso olhar para as vilas que pereceram pela França na Primeira Guerra Mundial. Fleury-devant-Douaumont, Beaumont, Bezonvaux, Cumières-le-Mort-Homme, Haumont-près-Samogneux, Louvemont-Côte-du-Poivre e Ornes são pontos no mapa que transcendem a geografia; são tesouros de narrativas coletivas, cuja preservação se torna um dever sob o aspecto humanitário.

A psicologia por trás da memória coletiva sugere que as narrativas são moldadas e transmitidas através de gerações, muitas vezes influenciadas por fatores culturais, sociais e políticos. No entanto, o esquecimento se torna uma ameaça quando o tempo passa e as testemunhas diretas desaparecem. As vilas que foram engolidas pela guerra enfrentam o risco constante de se tornarem esquecidas, mas também incompreendidas.

Nunca é demais lembrar que o esquecimento é uma força insidiosa que ameaça apagar as narrativas mais profundas de nossa história. No contexto das vilas que “morreram” pela França na Primeira Guerra Mundial, o fenômeno do esquecimento é particularmente intrigante. A devastação da guerra, com sua fúria incontrolável, aniquilou vilarejos inteiros, apagando não apenas estruturas físicas, mas também os nomes e rostos das comunidades que ali existiam. O esquecimento dessas vilas é mais do que uma amnésia coletiva; é um processo gradual e muitas vezes inadvertido que ocorre ao longo do tempo.

Uma das razões para o esquecimento é a natureza dinâmica da memória coletiva. Com a sucessão das gerações, as histórias são filtradas, reeditadas e reinterpretadas. Não por acaso, a desconexão geracional é um catalisador adicional do esquecimento. À medida que os que testemunharam diretamente os eventos da Primeira Guerra Mundial desaparecem, as histórias se transformam em narrativas distantes, perdendo a autenticidade e a urgência que apenas as testemunhas oculares podem proporcionar. A transmissão oral da memória coletiva, frequentemente vista como uma ponte entre gerações, pode falhar quando não há alguém para transmitir essas histórias pessoais. Em contrapartida, a falta de registros escritos ou testemunhas diretas contribui para a lacuna na preservação da memória. O esquecimento, nesse contexto, não é apenas uma negligência consciente, mas resultado natural do curso inexorável do tempo.

O trauma coletivo também não deve ser subestimado. A magnitude dos eventos que cercam a Primeira Guerra Mundial foi avassaladora, deixando sociedades inteiras em choque. O luto e o sofrimento generalizados muitas vezes resultam em um desejo inconsciente de afastamento das lembranças dolorosas. À medida que as cicatrizes emocionais persistem, a sociedade pode inadvertidamente optar por enterrar essas memórias profundamente, como se o ato de esquecer pudesse aliviar a dor do passado.

Justamente por isso, a continuidade das vilas que foram sacrificadas durante a Primeira Guerra Mundial desempenha um papel fundamental na conservação da memória coletiva. A interseção entre política e preservação histórica é crucial para garantir que esses locais não se percam no esquecimento, e que as gerações futuras possam compreender com profundidade o impacto da guerra sobre as comunidades. Preservar a memória dessas vilas se faz relevante para homenagear os que perderam suas vidas, como também para compreender o impacto psicológico e social das guerras. A história das vilas “mortas” é muito mais do que uma página esquecida da Primeira Guerra Mundial. É uma lição sobre a fragilidade da paz e a necessidade de se lembrar das consequências humanas dos conflitos.

Propiciar meios de reflexão sobre as vilas que “morreram” pela França na Grande Guerra é imprescindível para que se coloque em primeiro plano a devastação física e a batalha contra o esquecimento. Somente ao abordar ativamente o risco do esquecimento, é possível preservar a integridade da memória coletiva e resgatar a história daqueles que, em silêncio, testemunharam a efemeridade da vida em meio à tempestade da guerra.

AS VILAS SILENCIADAS: O PAPEL EDUCATIVO NA MEMÓRIA DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

É importante dizer que o papel educativo dessas vilas transcende a mera transmissão de informações históricas; elas se tornaram testemunhas eloquentes e educadoras vivas de um passado doloroso, desempenhando um papel vital na formação da compreensão qualquer um que estuda sobre os horrores da guerra.

Dessa maneira, as vilas devastadas durante a Primeira Guerra Mundial não se resumem a histórias em livros; são locais tangíveis que atuam como testemunhas preservadas do passado. Utilizar este caso emblemático no currículo educacional permite que os alunos se conectem diretamente com a história, compreendendo melhor a própria atmosfera desses lugares.

Por outro lado, ao abordar as vilas sacrificadas como objeto de análise, os estudantes são desafiados a desenvolver habilidades críticas. A necessidade de questionar, analisar e interpretar as circunstâncias que levaram à destruição dessas comunidades promove o pensamento crítico, preparando os alunos para avaliar informações de maneira abrangente.

As ruínas das vilas oferecem também uma perspectiva única sobre as consequências humanas da guerra. Por meio das vilas, os alunos têm a oportunidade de contemplar os danos materiais, as vidas interrompidas, as famílias destruídas e as comunidades perdidas. Essa compreensão mais profunda da dimensão humana do conflito contribui para a formação de cidadãos mais conscientes e compassivos. Além disso, ao compreenderem as histórias por trás das ruínas das vilas, os alunos podem desenvolver empatia e respeito pelo patrimônio histórico. Essa conexão emocional cria um vínculo duradouro entre os estudantes e as experiências vividas por aqueles que sofreram durante a guerra, promovendo um respeito mais profundo pela diversidade cultural e histórica.

As vilas sacrificadas se tornam, portanto, não apenas um relicário do passado, mas educadoras ativas, inspirando as gerações futuras a refletirem sobre as consequências da guerra e a aspirar a um mundo mais justo e pacífico. Essas ruínas, permeadas pela memória coletiva, possuem uma importância pedagógica que transcendem o tempo, ensinando lições cruciais para a construção de uma realidade melhor.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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