Cães Ilhados: uma metáfora do Genocídio Armênio em animação

História em Rede
4 min readFeb 26, 2019

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“Chienne d’Histoire", ou "Cães Ilhados", na tradução oficial brasileira, é um curta de animação do diretor franco-armênio Serge Avedikian. O filme retrata uma situação real ocorrida na cidade de Constantinopla/Istambul, em 1910: a ação adotada pelo governo turco em relação aos cães de rua que lotavam o lugar. A presença destes animais nas ruas e guetos da capital do Império Turco-Otomano chegou a tal ponto que, não raro, passou a ser encarado como um incômodo.

Baseando-se em políticas modernizadoras e higienistas ocidentais, notadamente francesas, as autoridades turcas ordenaram que os cachorros fossem capturados e enviados para Sivriada, uma ilha deserta localizada nas proximidades da cidade. Segundo as estatísticas, cerca de 80.000 cães foram levados para a minúscula ilha, de apenas 0,05 km², onde a grande maioria encontrou a morte. Sem fontes de alimentos, muitos morreram de fome, enquanto outros acabaram afogados quando tentaram escapar da ilha. Uma tragédia. Pouco depois do ocorrido, um terremoto atingiu a região, fato que foi percebido por muitos moradores locais como uma punição de Deus por terem abandonado os cães.

Sensível ao drama animal e captando bem o cruel pragmatismo das autoridades, o curta é muito feliz ao evidenciar uma maneira de pensar que era dominante entre os governantes do início do século XX (e de muitos de hoje também): o espaço urbano deveria ser ordenado e restrito. Não havia limites para a marcha modernizadora da civilização.

Todavia, o "Massacre Canino de Hayırsızada", nome pelo qual o evento ficou conhecido, serviu não apenas para o diretor abordar o caso dos cães de Constantinopla. Francês de origem armênia, Avedikian provavelmente se valeu do caso real ocorrido com os cachorros para fazer uma analogia com o Genocídio Armênio (ainda hoje controverso e fruto de intensas discussões sobre a sua intencionalidade ou se teria sido de fato um Genocídio) perpetrado a mando das autoridades do Império Turco-Otomano.

O Genocídio Armênio ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial e teve início em 1915. Movidos pelo ideal nacionalismo do panturquismo, o governo dos Jovens Turcos tinha por objetivo a adoção de políticas de valorização de Turcos e turco-descendentes em detrimento de outras etnias que habitavam o Império, em especial os que professavam o cristianismo, como os armênios. Tudo começou em 24 de abril de 1915, quando cerca de 250 líderes religiosos e intelectuais de origem armênia que viviam em Constantinopla/Istambul foram presos. Em seguida, tropas do Império obrigaram a população armênia das cidades a abandonarem suas casas e se deslocarem em direção às áreas desérticas da Turquia. Nesta marcha forçada, muitos foram os que morreram por fome, sede, doenças ou ataques das tropas que, em tese, deveriam zelar por sua segurança. Estima-se que 800 mil pessoas foram mortas neste período.

A questão até hoje é mal resolvida. Isso porque nem todos os países, na verdade a minoria, reconhece os acontecimentos em questão como genocídio. A Turquia até hoje refuta a ideia, negando ainda qualquer tipo de reivindicação ou compensação em função do evento. No caso do Brasil, embora aconteça anualmente manifestações públicas de solidariedade aos armênios, o país não está entre os que reconhecem o Genocídio Armênio.

É bem verdade que não há qualquer menção ao genocídio ao longo do filme. Mesmo assim, é difícil não enxergar o filme como uma metáfora do genocídio em um contexto no qual a memória do evento ainda se faz muito viva e pertinente. Vários indícios apontam para isso: a proximidade com a Primeira Guerra Mundial, a diáspora, a semelhança do massacre e o inequívoco sentimento de superioridade das autoridades em relação às vítimas.

Vencedor da palma de ouro no Festival de Cannes, os quase 15 minutos de filme conseguem ser extremamente elucidativos em vários sentidos, mostrando bem que uma bela animação pode expressar muito mais do que se imagina.

O filme completo, o qual não possui diálogos, pode ser visto abaixo:

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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