Cinema & História: “Tangerinas”, um filme sobre a Guerra da Abecásia
"Mandariinid" ou, traduzindo para o português, "Tangerinas" (2013), é um excelente filme de co-produção estoniana e georgiana. Curto, com poucos elementos e personagens, além de se passar sempre no mesmo cenário, uma casa e os seus arredores, a obra se destaca justamente pela sua simplicidade cativante.
Tendo a Guerra da Abecásia como pano de fundo, vale a pena esclarecer o contexto que guia esta película. A Abecásia, localizada no Cáucaso Ocidental, foi palco de um conflito armado entre Geórgia e Abecásia, antigas regiões soviéticas que guerreavam por questões autonomistas. Quando a Geórgia obteve sua independência após a desagregação da URSS, a população da Abecásia, incluída nas fronteiras da recém-criada República da Geórgia, preocupou-se com a aplicação de possíveis políticas de uniformização étnica e cultural por parte do governo georgiano.
A situação tensa resultou em uma guerra entre as tropas da Geórgia, dispostas a manter a integridade territorial do país, e milícias abcases independentistas. Travada entre 1992 e 1993, a guerra ficou marcada tanto pelo êxodo, quanto pela limpeza étnica de georgianos que viviam na Abecásia. O cessar-fogo veio em 1994, mas até hoje a situação da região é mal definida: embora tenha obtido a independência na prática, não há reconhecimento internacional. O único país relevante que reconhece a independência é a Rússia, que mantém a Abecásia como uma zona de influência.
O filme se passa em uma das várias aldeias criadas por estonianos no território da Abecásia na segunda metade do século XIX. A guerra, porém, mudou completamente a vida pacífica dos habitantes estonianos no início da década de 90. A maioria decidiu voltar para sua terra natal, que também se separou da antiga União Soviética, de modo que as aldeias ficaram quase vazias. Apenas alguns permaneceram. Dentre eles o estoniano Ivo, já idoso, que ficou para colher suas plantações de tangerinas e não abandonar o único lar que conheceu em sua vida. Também ficou o seu vizinho, Margus. Em meio a um conflito sangrento que vitimou milhares de pessoas, Ivo se depara com uma situação no mínimo inusitada: após uma escaramuça envolvendo tropas da Geórgia e milícias da Abecácia em frente a sua casa, o velho homem decide resgatar e tratar os únicos sobreviventes: um mercenário checheno chamado Ahmed que luta pela Abecásia e Niko, um soldado da Geórgia.
Em lados opostos na guerra e alimentando um ódio mortal um pelo outro, Ahmed e Niko se recuperam em diferentes quartos da casa de Ivo, que se vê na difícil posição de ocupar-se não só dos ferimentos dos combatentes, como também da grande rivalidade entre eles, amenizada apenas pela promessa de não se matarem na casa do benfeitor. Começava ali uma breve, mas intensa relação que mudaria a vida de todos eles. Na impossibilidade de se matarem, o embate físico cede lugar a uma disputa ideológica que remete aos diferentes lados da Guerra da Abecásia.
Ao longo de seus 83 minutos, "Tangerinas" consegue ser absolutamente simples e direto, destacando-se principalmente por seu discurso pacifista. A irracionalidade da guerra é desvelada justamente a partir da relação entre os dois soldados. Apesar do ódio inicial de Ahmed e Niko, é muito interessante perceber como a convivência forçada entre eles acaba por aproximá-los, ao mesmo tempo em que os preconceitos existentes são desfeitos à medida que se conhecem melhor. A casa de Ivo passa a ser, então, o espaço onde a guerra se ameniza, se torna Fria, e o ódio cede a uma trégua que acaba por humanizar os soldados, apaziguando os ânimos.
Questionamentos importantes, então, surgem a partir daí: qual o sentido da guerra? O que nos torna diferentes uns dos outros a ponto de matar e dar a vida por uma causa? Essas diferenças são tão importantes assim? Em um espaço neutro, onde as questões ideológicas se tornam irrelevantes diante da necessidade de sobrevivência, a guerra é repensada pelos personagens. E Ivo, que empresta sua casa e sua sensibilidade, conduz essa reflexão por meio da solidariedade abnegada que inspira a humanidade nos combatentes.
A direção do georgiano Zaza Urushadze é como todo o filme, sóbria e direta. Com um estilo ágil, sem grandes efeitos e sendo bastante econômico, sem que isso interfira na qualidade da obra, Urushadze conduz a trama com uma boa dose de sutileza e elegância. Óbvio que ajuda muito a atuação excelente dos atores, com destaque para o excepcional Lembit Ulfsak, que dá vida a Ivo, e os diálogos muito bem formulados. Tudo na medida certa.
"Tangerinas" é um bom exemplo de como um filme pode ser muito bom, possuir um enredo interessante, uma trama bem conduzida, sem ser uma grande produção. Marca, aliás, do incrível cinema do Leste Europeu.
O trailer do filme pode ser conferido abaixo:
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.