Eugenia e Raça na História do Brasil: uma entrevista com Vanderlei Sebastião de Souza
O assassinato do norte-americano George Floyd, no dia 25 de maio de 2020, motivou uma série de protestos contra a discriminação racial pelo mundo. O caso, marcado pela violação de direitos humanos, tem sido discutido a partir de pressupostos do racismo estrutural que subsiste em diferentes instâncias dos Estados Unidos. Quando pensamos a respeito, é difícil não considerar o papel da Eugenia, que exerceu influência significativa entre os intelectuais norte-americanos no início do século XX. Baseada na ideia de aprimoramento dos seres humanos e orientando-se pelo pensamento evolutivo, a Eugenia abriu espaço para uma série de teorias racistas que deixaram um triste legado de preconceito que ressoa ainda hoje.
Engana-se, porém, quem acredita que o movimento eugenista se limitou aos EUA e aos países europeus, diretamente envolvidos com o avanço imperialista na virada do século XIX para o XX. A Eugenia também se fez relevante no meio intelectual brasileiro na época. E é exatamente este o objeto de pesquisa do historiador Vanderlei Sebastião de Souza. Professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR), Vanderlei possui vasto conhecimento sobre o assunto. Tendo cursado o mestrado e o doutorado em História das Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz, o historiador desenvolveu estudos que constituem referências fundamentais para o estudo do movimento eugenista no Brasil. Em Renato Kehl e a Eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras, Souza estudou a principal personalidade do movimento eugênico brasileiro, analisando a circulação e as apropriações da Eugenia entre os intelectuais do país. Já em Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro, estudo premiado no Terceiro Prêmio de Teses (2013), o autor aborda o pensamento de Roquette-Pinto, destacando, dentre outros aspectos, o diálogo que este antropólogo estabeleceu com as discussões a respeito da miscigenação racial e o seu projeto de valorização da mestiçagem no Brasil. Um currículo invejável e que o coloca como um importante nome dos estudos dedicados a História das Ciências no país.
Conversamos com Vanderlei Sebastião de Souza sobre a Eugenia no Brasil. O bate-papo enriquecedor esclareceu diferentes pontos a respeito do movimento eugenista e de sua recepção no Brasil. Confira a entrevista.
História em Rede — Bom dia, Vanderlei, é uma satisfação ter essa conversa que esclarecerá bastante os leitores do “História em Rede”. Você poderia explicar o que foi a eugenia e em que contexto ela emergiu e se institucionalizou como um movimento organizado?
Vanderlei Sebastião de Souza — A eugenia emergiu na virada do século XIX para o XX em sintonia com a expansão do imperialismo europeu e do otimismo em relação ao progresso científico e industrial. Formulada inicialmente pelo naturalista britânico Francis Galton como a ciência da “boa geração”, a eugenia fez parte de um amplo movimento científico e social que desejava empregar os conhecimentos da biologia evolutiva e das teorias raciais para aperfeiçoar as características biológicas e as habilidades humanas e apressar o processo evolutivo. Essas ideias emergiram em estreito diálogo com o eurocentrismo, o darwinismo social e o racismo científico, ideologias que acreditavam na desigualdade racial entre os seres humanos e na existência de raças superiores e inferiores.
Na memória social, a eugenia é normalmente associada ao nazismo e ao tribunal eugênico alemão, responsável, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo genocídio de milhões de judeus, doentes mentais, deficientes físicos, homossexuais e até mesmo adversários políticos que se opuseram ao fascismo. Na verdade, o nazismo levou ao limite extremo projetos de seleção e extermínio racial que vinham sendo idealizados em diferentes países do mundo. Embora essa ligação entre eugenia e nazismo seja correta, ela acabou ocultando o sentido muito mais amplo e difuso que os projetos eugênicos alcançaram nas primeiras décadas do século XX, tanto na Europa e nos Estados Unidos quanto em países da América Latina, Ásia, África e Oceania. É preciso compreender que a eugenia foi assumida no mundo todo como um projeto moderno e racional que contagiou as elites letradas, médicos, antropólogos, educadores, autoridades públicas e ativistas de diferentes matizes ideológicas.
Como as pesquisas históricas tem apontado, a eugenia emergiu inicialmente em países considerados liberais, como a Inglaterra e Estados Unidos, sendo que foi neste último, ainda na década de 1910, que as ideias eugênicas alcançaram maior capacidade de institucionalização e radicalização, sustentadas por ideologias racistas e segregacionistas, pela supremacia branca e pelo desejo de purificação genética e racial. Os programas de seleção social e segregação racial desenvolvidos nos Estados Unidos alcançaram seu ápice na aprovação de uma ampla legislação eugênica, como as leis de esterilização eugênica, a proibição de casamentos inter-raciais e uma rígida política de seleção imigratória.
História em Rede — A Eugenia costuma ser associada a projetos europeus e norte-americanos, mas nem todos sabem que ela também se fez influente entre pensadores brasileiros. Quais são as origens e as características do movimento eugênico do Brasil?
Vanderlei Sebastião de Souza — A eugenia teve uma ampla recepção não só no Brasil como em outros países da América Latina, especialmente na Argentina, México, Chile e Peru, países que também desenvolveram movimentos eugênicos bem organizados. No caso do Brasil, a eugenia encontrou adeptos e se institucionalizou no período entre as duas guerras mundiais, sendo incorporada pelas elites letradas e autoridades políticas como um símbolo importante de modernidade, como um instrumento técnico e científico que poderia contribuir para o aperfeiçoamento da população brasileira, que para muitos eugenistas significava o branqueamento e a civilização da nação.
De maneira geral, o movimento eugênico brasileiro foi moldado pelas características particulares da realidade do país, marcada por questões sociais e raciais bastante emblemáticas, entre elas a pobreza, a presença constante de doenças, a ampla miscigenação racial e a forte presença de indígenas e africanos. Ao mesmo tempo, a eugenia brasileira também foi emoldurada tanto pela tradição médico-sanitarista quanto pela forte presença da igreja católica no ordenamento da sociedade. De um lado, a eugenia no Brasil esteve associada às ideologias médicas e sanitaristas que se desenvolveram no início do século XX e que incorporaram as medidas eugênicas às reformas do meio e à educação higiênica, crentes de que as mudanças do meio seriam hereditariamente incorporadas pelas futuras gerações. De outro lado, o difuso catolicismo brasileiro limitou a atuação de eugenistas nas discussões sobre controle o matrimonial e da reprodução humana, vistos como temas exclusivos da igreja.
Embora essas tradições tenham configurado a eugenia brasileira como um caso particular de pensamento eugênico, o que também se pode dizer de outros países da América Latina, não se deve imaginar que a eugenia no Brasil ficou alheia aos projetos mais radicais. Na verdade, a história da eugenia brasileira é complexa e bastante heterogênea, e deve ser compreendida a partir da adoção de diferentes projetos eugênicos. Ao mesmo tempo que eugenistas brasileiros defenderam o higienismo neolamarckista, apostando no sucesso das políticas de reforma social, estes também estiveram envolvidos com a defesa de medidas mais radicais e biologicamente deterministas, como os projetos de reprodução humana, de controle matrimonial, de esterilizações eugênicas e do estabelecimento de rígidas barreiras raciais. Embora essas medidas oficial e institucionalmente encontraram pouca ressonância no país, é sabido que os eugenistas mais alinhados com o racismo científico defenderam seguidamente medidas duras ligadas a chamada “eugenia negativa”, comum em países como Estados Unidos e Alemanha.
História em Rede — Medidas de caráter eugenista chegaram a ser colocadas em prática no Brasil? Se sim, poderia citar alguns exemplos?
Vanderlei Sebastião de Souza —Sim, algumas medidas chegaram a ser colocadas em prática, especialmente nos anos 1930. Contudo, eu costumo dizer que a eugenia no Brasil teve um impacto muito mais em termos de difusão de ideias do que propriamente de aplicação oficial de suas medidas. Um exemplo é a esterilização eugênica, que embora encontrasse defensores convictos, como Renato Kehl, Afrânio Peixoto e Leonídio Ribeiro, jamais encontrou abrigo na legislação brasileira. O que não quer dizer que a pratica da esterilização não tenha sido empregada em instituições psiquiátricas ou mesmo em hospitais públicos e privados, sobretudo contra mulheres pobres e negras.
A principal medida que encontrou abrigo oficial do Estado foi sem dúvida as leis de controle imigratório, que previam medidas de seleção racial e eugênica dos imigrantes que aportavam no Brasil. Aliás, durante o governo Vargas, os eugenistas foram seguidamente chamados para debater ou formular projetos de imigração, seja em comissões específicas do governo ou mesmo na tribuna da Câmera dos Deputados, como ocorreu durante a constituinte de 1933-1934. Uma das comissões responsáveis pela elaboração do projeto de imigração foi constituída inclusive por eugenistas como Renato Kehl e Roquette-Pinto, presidida por ninguém menos que Oliveira Vianna, jurista e pensador social bastante conhecido por sua proximidade com o movimento eugênico e por suas obras sobre a questão racial brasileira.
Ainda nos anos 1930, o exame médico pré-nupcial, desejo antigo dos eugenistas, também foi amplamente discutido e acabou recebendo o abrigo da constituição brasileira, mas sem a força da obrigatoriedade. Apesar da lei ser elaborada muito mais em termos de recomendação ou sugestão, acabou servindo para difundir os princípios da eugenia. O mesmo aconteceu com a aprovação da obrigatoriedade da educação eugênica nas escolas brasileiras, atendendo a um desejo de eugenistas, médicos e educadores ligados ao movimento eugênico.
História em Rede — A miscigenação é um traço marcante da formação histórica do Brasil, que desde o período colonial notabilizou-se pela heterogeneidade étnica de sua população. Como os eugenistas brasileiros encaravam essa questão?
Vanderlei Sebastião de Souza — No que diz respeito às questões raciais, muitos eugenistas brasileiros acreditavam que a miscigenação e a presença de negros e indígenas na formação do Brasil eram responsáveis pelo atraso, incivilidade e degeneração de parte da população. Para estes, a solução para os “problemas brasileiros” passava por projetos distintos, mas ambos inspirados no darwinismo social e no racismo científico: de um lado, defendiam políticas de segregação racial e de limitação da mistura racial, crentes de que a miscigenação gerava tipos degenerados; de outro lado, havia eugenistas que compreendiam que o caminho para a regeneração racial passava necessariamente pelo branqueamento gradual do Brasil, estimulado especialmente pela maior atração de imigrantes europeus, vistos como racialmente superiores e capazes de liderar o processo de seleção eugênica.
Mas o movimento eugênico brasileiro também tinha integrantes que se opunham ao racismo científico e ao fatalismo racial, como era o caso de Edgard Roquette-Pinto e Octávio Domingues, para os quais a mistura racial deveria ser vista como processos de combinação de caracteres e não de formação de anomalias genéticas, como pregavam a maioria dos eugenistas. Para Roquette-Pinto, médico e antropólogo que se notabilizou por seus estudos em antropologia física, os negros, indígenas e mestiços do Brasil eram eugenicamente saudáveis e não deveriam ser vistos como biologicamente inferiores. Seus estudos em eugenia e antropologia tinham sido empregados justamente para demonstrar que os problemas brasileiros não eram de ordem racial, mas sim de ordem política, educacional e de saúde pública.
História em Rede — Um dos seus livros recentes analisa a trajetória do eugenista Renato Kehl. Poderia apresentar este indivíduo e explicar a sua relevância para a Eugenia brasileira?
Vanderlei Sebastião de Souza —Renato Kehl foi a principal liderança do movimento eugênico brasileiro, além de ser um dos nomes mais influentes da eugenia na América Latina. Ao longo de sua trajetória, publicou mais de duas dezenas de livros sobre eugenia e participou da criação de sociedades eugênicas, como a Sociedade Eugênica de São Paulo, fundada em 1918, e da Comissão Central Brasileira de Eugenia, criada durante o governo Vargas com o objetivo de assessorar o governo em projetos eugênicos. Kehl foi ainda diretor e fundador do Boletim de Eugenia, periódico que teve um papel importante na difusão das ideias eugênicas no Brasil.
Sua trajetória é bastante emblemática especialmente por ter defendido ideias e medidas eugênicas ligadas à chamada “eugenia negativa”, que promovia projetos de esterilização eugênica, controle matrimonial, seleção imigratória, entre outras políticas que visavam a purificação racial e a eliminação dos indivíduos supostamente degenerados. Essas medidas eram baseadas no racismo científico, em políticas de segregação racial e ideologias que desde o início do século XX justificaram o racismo, sobretudo em países como os Estados Unidos e Alemanha.
A obra de Kehl é especialmente marcada pelas visões negativas e reacionárias sobre a formação da população brasileira, pautadas por um violento determinismo racial. Embora tenha feito parte do movimento sanitarista brasileiro, se envolvendo com a implantação de políticas de reforma higiênica e sanitária nos governos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, a partir do final dos anos 1920 Kehl progressivamente assumiu posicionamentos mais radicais em relação à miscigenação racial e à formação do Brasil. Em sua leitura, o grande problema do país era justamente a presença de uma ampla população mestiça, vista como inferior e incapaz. Para esse eugenista, os mestiços eram tipos híbridos que tendiam sempre à degeneração.
Renato Kehl sempre se entusiasmou com o movimento eugênico norte-americano e alemão, não poupando elogios às políticas de segregação racial dos Estados Unidos e aos projetos de higiene racial nazista. Aliás, seu grande desejo era fundar no Brasil um instituto de eugenia nos moldes do Instituto de Eugenia de Berlim, responsável pela criação das diretrizes da política eugênica alemã. No final dos anos 1930, Kehl lamentava ao amigo e escritor Monteiro Lobato que seu projeto não encontrou abrigo do governo Vargas, justificando que isso devia-se em grande medida ao fato de Kehl ser um paulista, visto como um adversário do governo, especialmente depois da revolta constitucionalista de 1932. É marcante na biografia do eugenista a sua sensação de chegar ao final dos anos 1930 como um derrotado, ou “mal compreendido”, como o próprio amigo Lobato o consolava. Na verdade, as ideias de Kehl entram em desprestígio muito mais pelo desenrolar da política internacional e pelo início da Segunda Guerra Mundial do que pelo suposto desprestígio de Vargas em relação aos paulistas.
História em Rede — A Eugenia nazista provavelmente é a primeira coisa que vem à cabeça de alguém quando se pensa neste assunto. De que forma o pensamento eugênico brasileiro dialogou com o movimento eugênico alemão?
Vanderlei Sebastião de Souza — De maneira geral, a historiografia classifica o movimento eugênico internacional a partir de duas grandes tradições de pensamento: a tradição anglo-saxão, considerada mais radical e orientada pela genética mendeliana; e a tradição latina, mais “suave”, ligada ao evolucionismo neolamarckista e às propostas de reforma do meio. Em trabalhos sobre eugenia no Brasil publicados recentemente, especialmente nos estudos sobre os distintos projetos eugênicos de Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, procurei demonstrar que essas classificações são imprecisas e devem ser melhor problematizadas, uma vez que as principais lideranças do movimento eugênico brasileiro participaram de uma rede internacional que envolvia eugenistas, médicos, psiquiatras e antropólogos de diferentes lugares do mundo. Mesmo considerando que a eugenia brasileira tem características próprias, ligadas às tradições científicas, médicas e ideológicas nacionais, não há dúvida que esse diálogo internacional reconfigurou as ideias eugênicas em diferentes direções, seja na adoção do neolamarckismo como orientação teórica, seja nos usos da genética mendeliana. Ao mesmo tempo, é preciso compreender que o uso de um modelo teórico ou outro não conduz necessariamente a projetos mais radicais ou não, uma vez que é preciso compreender, antes de tudo, os sentidos políticos dessas apropriações. No caso de Kehl e Roquette-Pinto, por exemplo, o uso da genética mendeliana resultou em projetos políticos e intelectuais bem distintos.
Entre os brasileiros, Renato Kehl foi o eugenista que manteve um diálogo mais próximo com a tradição eugênica alemã, conforme procurei demonstrar com mais detalhes em meu livro sobre o eugenista, resultado de minha pesquisa de Mestrado em História das Ciências. Nos anos 1930, no auge do radicalismo eugênico, Renato Kehl não poupou elogios às medidas eugênicas proposta pelo governo nazista, defendendo que as políticas eugênicas do Terceiro Reich deveriam inspirar o mundo todo como exemplo de política nacional implantada com coragem e planejamento. Vale lembrar que Renato Kehl conhecia o movimento eugênico alemão de perto, uma vez que fizera seguidas viagens para Alemanha na virada dos anos 1920 para os anos 1930, quando entrou em contato com eugenistas e instituições eugênicas da Alemanha, Noruega e Suécia. Suas principais obras, como Lições de Eugenia (1929) e Sexo e Civilização - Aparas Eugênicas (1933), são produzidas em estreito diálogo com a “eugenia negativa”, ficando claro a sua defesa de uma radical política biológica como projeto de transformação nacional, exatamente como vinha sendo gestado no norte da Europa, sobretudo na Alemanha.
História em Rede — Nos livros didáticos de História, quando se aborda a Eugenia, o tema em geral está associado aos países imperialistas. Contudo, estudar a influência deste pensamento no Brasil é muito importante para compreender diferentes aspectos da história recente de nosso país. Como um especialista no assunto, de que maneira você acha que esta temática deveria ser abordada na Educação Básica?
Vanderlei Sebastião de Souza — Eu entendo que a história da eugenia é um objeto privilegiado para analisar e problematizar uma série de questões emblemáticas nas sociedades contemporâneas, tanto no Brasil quanto em outros países. Em primeiro lugar, por questões óbvias, a história da eugenia deveria ser amplamente abordada na educação básica porque nos permite compreender os dilemas das relações raciais, do racismo e da intolerância com as diversidades, seja ela racial, social, sexual ou de gênero. Essas são temáticas centrais na compreensão das desigualdades, das exclusões e da violência existente especialmente em países como o Brasil, com um longo histórico de desigualdades. Não podemos esquecer que, em tempos de expansão das ideologias autoritárias, racistas e supremacistas ligadas às agendas da extrema direita, as visões eugênicas continuam pautando praticas racistas, reacionárias e violentamente excludentes.
De outro lado, entendo que a reflexão sobre a história da eugenia também pode nos ajudar a compreender melhor a intervenção da ciência e das práticas médicas nos processos artificiais de reprodução humana, estimulados especialmente pelo avanço no desenvolvimento da genética e das tecnologias reprodutivas. Mesmo o debate sobre aborto, malformação congênita e os direitos reprodutivos, tão mal compreendidos e discutidos na sociedade brasileira, a eugenia tem sido recuperada a partir de ideias difusas sobre as distinções genéticas e raciais entre os seres humanos. Ao mesmo tempo, uma enorme indústria da beleza, dos laboratórios farmacêuticos e de tratamento de doenças genéticas tem reacendido as discussões sobre a necessidade de discussões éticas em torno de pesquisas envolvendo os seres humanos.
Se não podemos falar necessariamente do surgimento de uma nova eugenia, como acreditam alguns, não há dúvida que o crescimento do racismo, das ideologias de supremacia branca e os usos crescentes de novas tecnologias genéticas levantam uma série de discussões sobre as formas difusas com que os preceitos eugênicos continuam pautando as agendas contemporâneas. Penso, desse modo, que é fundamental que os livros didáticos problematizem a história da eugenia como forma compreensão tanto das violências, das exclusões e dos estigmas produzidos pelo racismo quanto das questões éticas envolvendo especialmente o processo de reprodução humana e os tratamentos para doenças genéticas.
História em Rede — A Eugenia não possui hoje no Brasil a mesma relevância científica de outrora. Neste sentido, é possível dizer que o pensamento eugênico ainda se faz presente de alguma forma na contemporaneidade?
Vanderlei Sebastião de Souza — Não há dúvida que desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com as reflexões feitas em torno dos usos da eugenia pelo Nazismo, as ideias eugênicas e o racismo científico passaram a ser duramente refutados, especialmente no campo das ciências e nas discussões sobre direitos humanos. Contudo, princípios eugênicos continuam formatando ideologias no mundo todo, sobretudo de grupos reacionários, racistas e ligados à projetos da extrema direita. No caso do Brasil, por exemplo, sempre que se discute políticas de controle da natalidade, é comum encontrarmos autoridades públicas defendendo maior rigor no controle sobre a natalidade da população pobre e negra.
Como destacamos anteriormente, princípios eugênicos também estão presentes nas agendas de discussões sobre o projeto genoma humano, sobre a reprodução assistida e os tratamentos para doenças ou malformação genética, em torno das quais giram uma ampla engenharia que promete corrigir ou tratar as supostas imperfeições humanas.
Em tempos de pandemia do novo coronavírus, a eugenia também tem sido colocada no centro das discussões, especialmente no que diz respeito ao debate sobre a imunidade de rebanho (imunidade coletiva). Para muitos especialistas, o descaso com as vítimas mais vulneráveis (entre eles idosos, pessoas com doenças preexistentes e as populações mais pobres), também pode ser vista com uma política de seleção eugênica, uma vez que as vítimas da pandemia seriam as pessoas mais frágeis.
História em Rede — Gostaria de agradecê-lo por aceitar conversar conosco e compartilhar um pouco de seus conhecimentos. Para finalizar, como você avalia a importância de se estudar a História da Ciência e de fazer Ciência no Brasil?
Vanderlei Sebastião de Souza — A história das ciências no Brasil é um campo que nas últimas décadas tem expandido de forma bastante interessantes, com a produção de pesquisas sobre diferentes objetos e a partir de distintas perspectivas e abordagens teóricas. Apesar desse crescimento e do processo de institucionalização, especialmente com a criação de novas pós-graduações e uma pujante produção bibliográfica, a História das Ciências é ainda um campo em aberto que tende cada dia mais a ocupar um espaço maior na historiografia brasileira.
Pode-se dizer que o campo da história das ciências no Brasil cresceu juntamente com a expansão do próprio papel social que a ciência brasileira tem ocupado nas últimas décadas, sobretudo com a vasta produção científica realizada no interior das Universidades Públicas, instituições responsáveis pela quase totalidade da pesquisa científica nacional. Infelizmente, como é do conhecimento de todos, temos assistido nos últimos anos ataques politicamente orquestrados contra a ciência brasileira, pesquisadores e Universidades Públicas, seja pelos sucessivos cortes no financiamento das Universidades e dos institutos de pesquisas, seja pelo violento negacionismo científico, sustentado muitas vezes por reacionárias forças políticas. Mesmo agora, quando o mundo todo clama pela intervenção da ciência no combate à covid-19, o governo brasileiro não apenas nega as orientações científicas e de especialistas em saúde pública, como continua com uma rígida política de cortes no orçamento da ciência e da educação, o que vem comprometendo o avanço conquistado em períodos anteriores.
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Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.