História Ensinada para Crianças: o Quilombo de Palmares em um Quadrinho da Primeira República
A inserção da História como disciplina escolar autônoma é antiga. No século XIX, em meio a movimentos de laicização e de construção das nações europeias, o saber histórico emergiu enquanto importante instrumento dos nascentes Estados nacionais. Tendo surgido inicialmente na França, este componente curricular logo se difundiu para outros sistemas educacionais. Como o historiador François Furet bem observou, nesta época “a história é a árvore genealógica das nações europeias e da civilização de que são portadoras”.
Não demorou até que o Brasil, recém-independente, seguisse o mesmo caminho. Durante o turbulento Período Regencial, a necessidade de formular um passado comum que contribuísse para a consolidação do Império estimulou a adoção de medidas neste sentido. Foi a partir desta preocupação que foram criados o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e o Colégio Pedro II, este no final de 1837 e o primeiro em 1838. Enquanto o IHGB delineou as bases da escrita da História do Brasil, fundamentada na confluência das três etnias que compuseram o país, o Colégio Pedro II foi a primeira instituição de ensino do país a incluir a História como parte do currículo de todas as suas séries. A influência francesa em relação ao currículo do Colégio Pedro II se faz evidente no discurso de seu principal idealizador, o ministro Bernardo Pereira Vasconcelos: “foi preciso buscar no estrangeiro a experiência que nos faltava, a atuação irresistível que então exerciam sobre nós as ideias, as instituições e os costumes, impôs-se o modelo francês”.
Seguindo a abordagem importada, o ensino de História, sempre em perspectiva eurocêntrica, reservava maior espaço para a História Universal, embora houvesse um tópico específico para a História Pátria, na qual se discutia questões pertinentes ao Brasil. Servindo como padrão para outros estabelecimentos de ensino durante o Império, o currículo do Colégio Pedro II, e consequentemente a História como disciplina autônoma, foi adotado em todo país. Com o fim do regime monárquico e a criação da República, o ensino de História continuou relevante, havendo, inclusive, discussões em torno da valorização da história nacional nos currículos escolares.
Foi justamente no alvorecer da República que uma revista infantil brasileira passou a publicar quadrinhos que ensinavam os leitores sobre a história do país. Estes quadrinhos, denominados História do Brasil em Figuras e carregados da linguagem infanto-juvenil da época, reproduzia de forma simplificada saberes históricos consagrados a respeito de episódios e fatos marcantes. Mas, afinal, que revista era esta? Estamos falando de O Tico-Tico, periódico que foi um dos grandes pioneiros na publicação de quadrinhos no Brasil. Inspirado na revista francesa La Semaine de Suzette, a publicação direcionada ao público infantil foi lançada no dia 11 de outubro de 1905 e rapidamente caiu nas graças dos leitores da época. Criada durante a Primeira República brasileira (1889–1930), os quadrinhos de O Tico-Tico se relacionavam em grande medida ao contexto político, social e cultural que o país, e principalmente a capital federal, então vivia.
O artigo que abre a nossa seção A História Ensinada para Crianças consiste na análise de um quadrinho que aborda Palmares, o célebre conjunto de quilombos estabelecido na região da Serra da Barriga. Publicada em duas partes no ano de 1906, a narrativa apresenta, por meio de desenhos e pequenas caixas de texto, uma visão sobre os quilombos baseada nas interpretações históricas consideradas mais aceitas naquela época. O autor dos quadrinhos sobre a História do Brasil, Leonidas Freire (1882–1943), foi um importante colaborador da revista O Malho e cofundador de O Tico-Tico, destacando-se por seu humor contestador. Cumprindo um papel educativo, os quadrinhos evidenciam não apenas a consolidação da História como disciplina escolar, mas também a maior preocupação com temas nacionais condizentes ao contexto republicano.
O primeiro ponto que chama a atenção no quadrinho é o título: “Os Palmares — sua destruição (1697)”. Simples e objetivo, ele dá uma boa ideia do tom que a história adota em suas duas partes. O objetivo da narrativa, como se pode imaginar, não é discorrer sobre a origem da comunidade ou sobre o cotidiano dos quilombolas, mas sim destacar o ataque que abreviou a sua existência. É bem verdade que o autor dedica algum espaço para apresentar características básicas a respeito de Palmares. Contudo, são os detalhes referentes ao embate entre os defensores dos quilombos e as forças chefiadas por Domingos Jorge Velho que dominam os quadrinhos. Esta escolha não parece ter sido por acaso: ao considerar a destruição de Palmares como um marco importante da História do Brasil, a HQ se posiciona. Refletindo os valores eurocêntricos e elitistas que predominavam na escrita da História, a narrativa associa os quilombos a um descaminho da ordem, legitimando assim a sua eliminação. Palmares, restrito a um mero episódio da história militar, era lembrado apenas pela enorme resistência que ofereceu aos portugueses em sua marcha colonizadora. A típica História Oficial do Brasil, que reconhece a participação de negros e índios, mas os subordinam diante do protagonismo de brancos cristãos de origem europeia.
A princípio, o autor traça um breve panorama sobre a origem de Palmares, mesmo sem ser esta a sua intenção. Contextualizando os quilombos, a narrativa indica a localização em que eles foram estabelecidos, na região da Serra da Barriga, em Alagoas, e associa o seu nome à presença de muitas palmeiras nos arredores da povoação principal. Palmares teria sido criado por 40 negros que fugiram de seus senhores no princípio do conflito entre portugueses e holandeses, crescendo com o tempo a partir de novas levas de escravos fugidos e de pessoas que lá nasciam. Complementada pelas figuras, que dão a ideia de uma comunidade rural, a história destaca a pluralidade de Palmares, que não se tratava de um único quilombo, mas de várias povoações de escravos fugidos. Embora acerte ao apresentar Palmares como um conjunto de quilombos, os quadrinhos fazem considerações que os estudos históricos mais atuais contestam. A primeira diz respeito ao seu surgimento. isto porque pesquisas apontam para a existência de mocambos na Serra da Barriga antes mesmo das invasões holandesas, inclusive com registros de expedições destinadas a reprimir os quilombolas. Outro ponto discutível está ligado à composição de Palmares. Mesmo sendo inegável que a maior parte dos palmarinos era de negros fugidos, diversos historiadores apontam que índios e mamelucos também viveram junto aos quilombolas. Esse, aliás, é um bom indício de que Palmares não era tão isolado, impressão deixada pela HQ. Por mais que o acesso fosse restrito, até pela geografia do lugar, não são poucos os estudos que evidenciam diferentes contatos de Palmares com o mundo colonial.
A maneira segundo a qual os negros são encarados na história em quadrinhos, obviamente, é passível de críticas. A começar pela representação física dos mesmos. Refletindo o estereótipo do negro que predominava no início do século XX, os quilombolas são apresentados com feições caricatas e exageradas, reforçando a imagem jocosa associada aos afrodescendentes neste período. Ao mesmo tempo, a narrativa pontua o que considera uma grande contradição: o fato dos palmarinos, outrora escravos, “reduzirem a esse estado todos os camaradas de sua cor que aprisionavam”. Semelhante observação, repetida a partir de indivíduos dos séculos XVIII e XIX que analisaram Palmares, se deve acima de tudo ao descaso dos quadrinhos em relação às referências pregressas dos quilombolas. Os habitantes de Palmares reproduziram na comunidade diversos elementos e características de suas sociedades de origem, tal qual a escravidão que existia na África. Não se tratava, porém, da escravidão atlântica praticada pelos europeus, mas de um modelo escravista mais próximo ao africano, baseado na prestação de serviços forçados por um dado período e desvinculado à noção de propriedade. A este respeito, não podemos esquecer também da heterogeneidade étnica e cultural dos indivíduos que vieram do continente africano, aspecto que contribuía para as complexas interações mantidas entre os próprios habitantes do quilombo. A HQ, mais preocupada em sublinhar a escravidão em Palmares, ignora por completo a vida cultural que lá existia e, apenas superficialmente, aborda a vida material do lugar. Por meio de figuras, a história indica a existência de uma comunidade de caráter rudimentar e assentada na agricultura. A pluralidade pertinente a este cotidiano, porém, passa despercebida. A produção de Palmares, que não se limitava à subsistência, incluía ainda a fabricação de artefatos diversos, os quais eram destinados igualmente a trocas mercantis com moradores de locais próximos. Ao contrário do que os quadrinhos dão a entender, Palmares era mais do que um refúgio de escravos fugitivos.
Mas se os costumes dos quilombolas sequer são mencionados, a organização política é destacada ao longo das figuras, sendo inegável que os quadrinhos reconhecem a existência de um Estado quilombola. Segundo a publicação, “o chefe de Palmares se chamava Zambi e a sua autoridade era igual a dos Morubixabas”, de modo que “tinha Zambi uma espécie de Conselho de Estado, composto de três moleques mesmo direitos, escolhidos entre os manos mais atilados”. Novamente, os quadrinhos ignoram as características das sociedades africanas de onde boa parte dos quilombolas vieram, enquadrando as experiências de Palmares nos moldes ocidentais. Aliás, a comparação do chefe do quilombo com os Morubixabas, as lideranças de povoações indígenas, não parece ter sido por acaso. Considerando o primitivismo associado aos povos originários no início do século XX, a impressão que fica é a de que a HQ equipara a organização política de Palmares em termos de rusticidade. Havia, porém, grandes diferenças entre os chefes de Palmares e os Morubixabas, a despeito de se aproximarem quanto ao papel de lideranças políticas. O exercício do poder em Palmares foi influenciado por referências africanas, o que incluía a figura de uma chefia que era eleita e poderia ser contestada ou mesmo afastada por uma assembleia de quilombolas. Evidentemente não se tratava de uma República ou de uma democracia, como algumas interpretações historiográficas dão a entender: o chefe de Palmares não exercia um mandato com um tempo pré-definido e nem havia igualdade entre os que lá viviam. De acordo com Flávio Gomes, Ganga Zumba ficou no poder por 33 anos, entre 1645 e 1678, enquanto Zumbi esteve a frente do quilombo de 1678 a 1695, ou seja, por 17 anos. Além disso, disputas políticas internas, como a que foi travada entre Zumbi e Ganga Zumba, abalavam o cotidiano local, deixando claro que o controle de homens e de força militar eram fatores importantes no que se refere ao poder em Palmares. Ainda assim, se tratava de uma organização na qual os quilombolas possuíam uma liberdade incomparável em relação ao cativeiro. A vida era baseada no que vários historiadores denominam como uma “coletividade camponesa”, de maneira que os bens e as terras, pequenas propriedades reservadas à agricultura, eram de uso comum. Palmares, enfim, possuía a sua própria organização política.
O mais interessante nos quadrinhos, porém, é perceber que a narrativa da história segue as interpretações historiográficas sobre Palmares predominantes na época. Cabe observar que no início do século XX as histórias do quilombo, de Zumbi e dos palmarinos não eram evocadas como expoentes da resistência à escravidão. Em um país no qual a Abolição da escravidão (1888) era recente e realizada sem qualquer indenização aos ex-escravos ou cuidados em integrá-los à sociedade brasileira, vigorava uma visão pouco crítica quanto ao passado escravista. A HQ, sem condenar a escravidão em momento algum e nem ressaltar a resistência dos afrodescendentes, justificava a destruição de Palmares às “imposições e abusos” que os quilombolas praticavam nos arredores. Expressando os princípios da boa sociedade brasileira ainda válidos na República, a destruição de Palmares se fez necessária para garantir e preservar a ordem político-social do Brasil. Assumindo o partido das autoridades coloniais, representantes da civilização europeia da qual a elite intelectual da República considerava-se herdeira, os quadrinhos ignoram as insistentes e fracassadas tentativas em submeter o quilombo, dando foco à vitória militar dos portugueses. Uma perspectiva, aliás, muito próxima do que Sebastião da Rocha Pita escreveu. Membro da elite de Salvador e formado em Coimbra, Rocha Pita escreveu em 1726 a obra História da América Portuguesa, uma ode à colonização na qual discorreu sobre Palmares em 26 parágrafos. A sua interpretação, pautada na ideia de civilização versus barbárie, bem como no enaltecimento das tropas portuguesas, foi uma importante referência para a historiografia brasileira do século XIX e início do século XX. Na HQ isso fica bastante claro no tom dado à vitória das forças coloniais sobre Palmares: a história se encerra com a comemoração da população de Olinda diante da vitória heroica sobre os quilombolas, sendo distribuídas pelo governador moedas ao povo, que celebrava com cânticos religiosos e procissões. Uma autêntica vitória da civilização europeia, tal qual Rocha Pita interpretou. Não há qualquer censura à escravidão, considerando-se legítimo a luta para reconduzir os palmarinos ao cativeiro.
Este ponto de vista se assemelha em grande medida ao de Francisco de Varnhagen, o principal historiador brasileiro do século XIX. Enfatizando a ilegalidade do quilombo de Palmares, já que se tratava de um Estado concorrente à colonização nos domínios portugueses, Varnhagen considera a destruição de Palmares como uma poeza executada pelo colonizador. O livro didático de história escrito por Joaquim Manoel de Macedo, Lições de Hitória do Brasil (1861), também endossa esta narrativa. O livro de Macedo, que era professor do Colégio Pedro II, manteve-se por décadas como referência fundamental nas escolas brasileiras, apresentando uma visão sobre a história de Palmares bem próxima do que se observa nos quadrinhos. Como destacou Macedo, “a existência de Palmares era um perigo para as capitanias onde existiam e avizinhavam com esses quilombos”.
A semelhança entre os quadrinhos e esta narrativa historiográfica consagrada no início do século XX se faz evidente ainda na forma como a morte de Zumbi foi apresentada. Reproduzindo um equívoco destacado por Rocha Pita, a HQ detalha que Zumbi e seus principais guerreiros preferiram se suicidar, se atirando do topo de um rochedo, do que aceitar voltar ao cativeiro. Esta afirmação, que predominava na época em que os quadrinhos foram escritos, acabou contestada posteriormente por diversos historiadores, os quais esclareceram que Zumbi foi surpreendido em seu refúgio e assassinado pelas tropas portuguesas. os quadrinhos de Leonidas Freire, portanto, refletem a narrativa histórica recorrente na época em que foram escritos.
Criada como uma forma didática de ensinar a História do Brasil ao público infanto-juvenil, a História do Brasil em Figuras constitui um bom exemplo de como esta disciplina era ensinada em princípios do século XX. Reproduzindo versões historiográficas tidas como as mais aceitas, a seção da revista O Tico-Tico deixava claro ainda as ideologias e as visões d emundo que marcaram este período. Um período no qual o Brasil ainda negava a pluralidade étnica e cultural de seu passado, reforçando as heranças da civilização europeia.
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.