História Ensinada para Crianças: representações sobre os indígenas na Primeira República
Em 1909, um curioso artigo da revista infantil “O Tico-Tico” chamou a atenção dos leitores. A foto de um indígena que naquele ano havia visitado o Rio de Janeiro, então capital do país, foi estampada com destaque na coluna “As Lições de Vovô”. A seção, na qual um periodista simulava ser um zeloso avô educando as crianças, dá a entender que o indígena anônimo tinha visitado a cidade para fazer reivindicações em prol de seu povo, afligido por problemas diversos. Uma evidente tentativa de diálogo com as autoridades políticas brasileiras, tantas vezes insensíveis às mazelas das populações nativas. Para além disso, não há informações sobre a etnia, o lugar de onde veio ou mesmo as demandas específicas deste sujeito. Constam apenas a foto e o texto educativo da coluna, o qual revela em detalhes a perspectiva hegemônica na sociedade brasileira sobre os povos indígenas. Ponto de vista, aliás, que o próprio periódico reconhecia ser discriminatório.
É importante ressaltar que durante a Primeira República brasileira (1889–1930), a relação das autoridades políticas e das elites com as populações indígenas foi marcada por uma complexa combinação de desprezo, marginalização e tentativas de assimilação. Este período, que sucedeu a queda da Monarquia e a Proclamação da República, caracterizou-se por uma série de mudanças políticas e sociais que influenciaram profundamente as atitudes em relação aos índios.
A “boa sociedade” da Primeira República não raro encarava os indígenas como um obstáculo ao progresso e à modernização do país. Esta visão estava enraizada em um conjunto de crenças e ideologias que associavam a modernidade ao desenvolvimento econômico e à assimilação cultural. Os indígenas eram frequentemente retratados como “selvagens” ou “atrasados”, e suas culturas e modos de vida eram considerados incompatíveis com o projeto de construção de uma nação moderna e civilizada.
Dentro dessa lógica, uma das principais estratégias adotadas foi a política de assimilação, que visava integrar os indígenas à sociedade brasileira dominante. A criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, liderado por Cândido Rondon, foi uma tentativa de institucionalizar essa política. O SPI tinha como objetivo “civilizar” os indígenas, promovendo a educação e a adoção de práticas agrícolas ocidentais. Embora a intenção declarada fosse proteger os direitos dos indígenas, na prática, muitas vezes resultou no repúdio de suas culturas e no esbulho de suas terras.
Não podemos esquecer que o desenvolvimento econômico foi uma prioridade durante a Primeira República, e isso implicou na constante exploração dos recursos naturais das terras indígenas. As elites econômicas, muitas vezes em acordo com as autoridades, promoviam a expansão da fronteira agrícola e a exploração mineral, o que resultava em frequentes conflitos com os povos indígenas. A apropriação de terras indígenas era intensa, e diferentes povos foram submetidos a trabalhos em condições análogas à escravidão nas propriedades rurais e seringais. Para essas elites, os indígenas representavam uma mão-de-obra potencialmente útil, mas que precisava ser “domesticada” e convertida ao modo de vida ocidental. Não havia qualquer valorização ou respeito pelas culturas nativas, tidas como inferiores.
Feita esta importante contextualização, vale a pena contemplar o texto da revista “O Tico-Tico” em sua integralidade antes de iniciarmos a análise. Foi mantida a grafia original da época.
“Lições de Vovô” sobre os Indígenas
Meus netinhos:
Mandaram-me como curiosidade o retrato de um dos indios, que estiveram no Rio de Janeiro ha pouco tempo.
Com effeito, é curioso ver a figura de um indio com o typo tão caracteristico (e que nós estamos acostumados a imaginar cobertos de pennas), vestido com paletot, collarinho e gravata como nós.
O povo quando os encontra pelas ruas da cidade, vendo-os assim e com os cabellos compridos, ri-se d’elles, acompanha-os, observa-os, como si fossem bichos.
Entretanto ha quem maltrate os pobres indios, que são brazileiros como nós, que não têm para onde ir e poderiam trabalhar socegados, augmentando a riqueza do paiz.
As creanças, que são os homens do futuro, precisam-se convencer de que os indios não são todos selvagens. Embora tenham o rosto differente do nosso, são homens e devem merecer auxilio.
De mais, os indios do Brazil não são de indole cruel como os dos Estados Unidos. São geralmente bons, intelligentes, conhecem as virtudes das plantas, são habilidosos e si tiverem bons conselhos podem se tornar muito uteis. Calcula-se que ha no Brazil cerca de um milhão de indios. Esses infelizes maltratados vivem pelos mattos sem poder adoptar os recursos da vida civilisada.
Si cuidassem d’elles, poderiamos, em pouco tempo, contar com um milhão de creaturas auxiliando a marcha do Brazil para o progresso pelo trabalho.
Já muitos indios têm prestado relevantes serviços aos homens civilisados.
Aqui mesmo no Rio de Janeiro, quando o almirante francez Villegaignon quiz tomar a cidade, foram os indios da tribu dos tamoyos que defenderam a terra e venceram as tropas do almirante. Em Pernambuco, um indio chamado Filippe Camarão, distinguiu-se na guerra contra os hollandezes, chegando a commandar tropas em diversos batalhões.
Riem dos indios. Em vez de rir, deviam auxilial-os.
Analisando as “Lições de Vovô”
O artigo do periódico “O Tico-Tico” revela uma perspectiva complexa e ambivalente sobre as populações indígenas durante a Primeira República brasileira. O escrito da coluna “As Lições de Vovô” oferece uma visão valiosa das atitudes predominantes entre as autoridades políticas e as elites da época, ao mesmo tempo em que sugere um apelo à compaixão e ao reconhecimento da humanidade dos povos indígenas. Analisando o texto, é possível compreender melhor como os grupos socialmente hegemônicos do período encaravam essas populações, no limiar entre o preconceito e a potencial valorização.
Durante a Primeira República, o desprezo e a estigmatização das populações indígenas eram não apenas generalizados, como também institucionalizados. Essas atitudes refletiam uma herança colonial-escravocrata, bem como a influência de correntes evolucionistas e do positivismo, recorrentes no pensamento das elites brasileiras. A visão desumanizadora dos indígenas como “bichos” ou curiosidades exóticas, mencionada no artigo de “O Tico-Tico”, é um reflexo das profundas barreiras culturais e raciais que separavam os povos indígenas da sociedade dominante. As autoridades políticas e as elites econômicas encaravam os indígenas como figuras pitorescas e fundamentalmente inferiores. Esse tipo de representação, ao associar os indígenas a animais, servia para justificar sua marginalização e a exclusão dos direitos pressupostos na cidadania plena.
O Darwinismo Social, que ganhou força no final do século XIX e início do século XX, incidiu diretamente sobre a visão das elites a respeito dos indígenas. Segundo essa ideologia, as sociedades humanas estavam sujeitas às mesmas leis de seleção que governavam o mundo natural. As elites brasileiras, orientadas por essas ideias, frequentemente viam os indígenas como um grupo “menos evoluído”, cuja sobrevivência e prosperidade eram incompatíveis com o avanço da “civilização” brasileira. Essa perspectiva justificava políticas de assimilação forçada e, em muitos casos, de extermínio cultural.
O racismo científico, promovido por estudos antropológicos e etnológicos da época, foi igualmente relevante para a estigmatização dos indígenas. Pesquisadores e cientistas tendiam a abordar os indígenas como objetos de estudo, catalogando suas características físicas e culturais de modo a reforçar ideias de inferioridade racial. Tais estudos eram utilizados para apoiar políticas de assimilação e justificar a subjugação dos indígenas.
A mídia e a literatura da época também contribuíam muito para a perpetuação desses estereótipos negativos. Representações caricaturais de indígenas em jornais, revistas e livros reforçavam a imagem de selvageria e atraso. O próprio artigo de “O Tico-Tico” reflete essa dualidade ao abordar os indígenas com uma mistura de curiosidade e paternalismo. Essa representação fortalecia a percepção pública dos indígenas como elementos exóticos e distantes da “civilização” urbana que crescia no século XX.
Embora o desprezo e a estigmatização dos povos indígenas fossem predominantes durante a Primeira República, o artigo de “O Tico-Tico” também revela um apelo à humanidade e utilidade desses povos. Isso se dá por meio de uma tentativa de reeducar a sociedade quanto ao valor intrínseco e potencial dos indígenas, tanto como seres humanos quanto como membros produtivos da sociedade brasileira. O autor das “Lições de Vovô” argumenta que os indígenas são “brazileiros como nós” e, portanto, merecem o mesmo apreço e dignidade. Este reconhecimento é significativo em um contexto histórico onde a desumanização e marginalização eram comuns. Ao afirmar que os indígenas são brasileiros, o artigo tenta incluir os indígenas na identidade nacional e combater a visão de que eles são estranhos ou externos à nação. Ainda que esta inclusão possa ser vista como um passo positivo para o reconhecimento de seus direitos como cidadãos, é bem verdade também que o respeito à alteridade indígena não estava em questão: para o vovô de “O Tico-Tico”, ser índio era incompatível com ser brasileiro.
E o lugar dos índios, aliás, estava bem definido: o de trabalhadores rurais situados na base da sociedade brasileira. No artigo, isso se percebe quando o “Vovô” escreve que os indígenas “poderiam trabalhar socegados, augmentando a riqueza do paiz.” Esse argumento utilitarista se coadunava à visão pragmática das elites da Primeira República, que estavam focadas no desenvolvimento econômico e na modernização do país. Ao destacar o potencial dos indígenas para contribuir economicamente, o artigo sugere que investir na integração e capacitação desses povos poderia beneficiar o país como um todo. Os interesses dos povos nativos, porém, são desconsiderados.
Esta perspectiva unilateral em relação aos indígenas fica muito evidente nas afirmações de que eles “não têm para onde ir” e “vivem pelos mattos sem poder adoptar os recursos da vida civilisada”. Ao mesmo tempo em que alude para as condições difíceis enfrentadas por esses povos, o artigo alerta para a necessidade de cuidar dos indígenas, fornecendo-lhes os recursos e o apoio necessário para que possam viver dignamente e contribuir para a sociedade. Este clamor à proteção não deixa de ser uma chamada para políticas mais humanitárias e inclusivas. Mesmo assim, trata-se de uma proposta insensível às reais demandas dos índios, já que o artigo parte do princípio que sabe o que é melhor para os indígenas. O velho fantasma da tutela que persegue este povos desde a colonização.
A ideia de tutela é notável quando o artigo sugere que, com “bons conselhos”, os indígenas “podem se tornar muito uteis.” Tal visão paternalista reflete a crença de que os indígenas precisavam ser guiados e transformados para se tornarem membros produtivos da sociedade. Para a sociedade da Primeira República não existia a possibilidade de manter a identidade indígena. Convicto da força inexorável do progresso, o artigo de “O Tico-Tico” vê o destino dos indígenas como inevitável: a conversão em trabalhadores situados na órbita dos grandes latifundiários. O periódico infantil argumenta que cuidar dos indígenas poderia resultar em “um milhão de creaturas auxiliando a marcha do Brazil para o progresso pelo trabalho.” Esse ponto de vista utilitarista está enraizado na ideia de que os indígenas poderiam ser transformados em uma força de trabalho relevante para o desenvolvimento econômico. Não por acaso, programas de assimilação frequentemente incluíam a promoção de práticas agrícolas ocidentais entre os indígenas, visando transformá-los em agricultores produtivos que poderiam ajudar a abastecer o mercado interno e, eventualmente, o externo.
O reforço à lógica assimilacionista em “O Tico-Tico” também se dá na medida em que o autor das “Lições de Vovô” procura integrar os indígenas à História do Brasil. Para o periódico, os índios mereciam maior atenção e sensibilidade, pois haviam participado de diversos episódios marcantes do nosso passado. Justamente por isso, a coluna destaca as contribuições históricas dos indígenas, sobretudo quanto à defesa do território contra invasores estrangeiros. Este reconhecimento era uma maneira de legitimar a inclusão dos indígenas na narrativa nacional, valorizando suas ações pretéritas como parte do patrimônio brasileiro.
Figuras históricas como Felipe Camarão foram exaltadas em “O Tico-Tico” enquanto exemplos de indígenas que foram significativos para a nação. Essas narrativas serviam para promover um senso de pertencimento e identidade nacional que incluía os indígenas. Todavia, apesar das intenções declaradas de inclusão e progresso, as políticas da Primeira República na maioria das vezes resultaram em assimilação forçada e perda de identidade cultural. Os indígenas eram frequentemente compelidos a abandonar suas tradições e modos de vida para se adequarem às expectativas das autoridades e das elites. Obviamente, muitas comunidades indígenas resistiram às políticas de assimilação, propiciando a formas de adaptação e negociação cultural. Ainda assim, fato é que a perspectiva assimilacionista dominante na sociedade brasileira, e reforçada pelo artigo da revista, redundou em efeitos desagregadores para os povos nativos.
Concluindo
O artigo de “O Tico-Tico”, enfim, sugere que a reeducação infantil é essencial para combater os estereótipos negativos e construir uma sociedade mais adequada com os ideais predominantes na Primeira República. A ênfase na educação das “creanças, que são os homens do futuro,” reflete uma crença na possibilidade de transformação social através da conscientização e do ensino. A perspectiva do artigo, contudo, não escapa da influência das ideias assimilacionistas dominantes na Primeira República: a maneira mais adequada de proporcionar um tratamento mais justo em relação aos povos indígenas passava invariavelmente por uma estratégia de integrá-los à sociedade e, ao mesmo tempo, alavancar o desenvolvimento econômico do país. Os ensinamentos pressupostos na proposta de inclusão e progresso dos povos indígenas durante a Primeira República brasileira eram, então, marcados por uma complexa mistura de intenções humanitárias e utilitaristas. Embora houvesse um reconhecimento emergente da humanidade e potencial dos indígenas, a contrapartida era a assimilação forçada e a perda de identidade cultural. Perceber essa dualidade é indispensável para compreender os limites do artigo publicado em “O Tico-Tico”, apesar de intenções positivas. Fica evidente que o desprezo e a estigmatização das populações indígenas durante a Primeira República foram manifestações de um racismo institucionalizado que permeava as políticas públicas, as atitudes das elites e as representações culturais. Essa visão desumanizadora não apenas justificava a marginalização dos indígenas, mas também contribuía para a manutenção de uma sociedade profundamente desigual. Reconhecer e abordar essas atitudes históricas é indispensável para entender os desafios contemporâneos enfrentados pelos povos indígenas no Brasil e para promover políticas de reparação e inclusão mais justas.
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.