Jerico, um filme sobre o Reverso da Conversão nos primódios da América
“Jerico” é um filme venezuelano dirigido por Luís Lamata que, apesar de suas limitações técnicas, entrega uma narrativa profundamente reflexiva sobre os primórdios da ocupação europeia nas Américas. O filme se passa durante o período das grandes explorações espanholas, particularmente focado em uma expedição que buscava descobrir os mares do Sul. A história é centrada na figura de Santiago, um padre dominicano que se junta à expedição como capelão, carregando consigo uma fé firme e convicções morais baseadas no cristianismo europeu. No entanto, ao ser capturado por um grupo de indígenas caribenhos e forçado a viver entre eles, Santiago é confrontado com uma realidade que desafia profundamente suas crenças e a visão de mundo eurocêntrica que ele até então mantinha.
A partir do personagem central, “Jerico” nos introduz à mentalidade dominante dos colonizadores europeus da época. Santiago, como capelão da expedição espanhola, carrega consigo a missão de converter as populações indígenas ao cristianismo, um reflexo claro do etnocentrismo europeu. Esse etnocentrismo se manifesta na crença de que a cultura europeia, particularmente sua religião, é superior e que os indígenas necessitam ser “civilizados” e resgatados de suas práticas consideradas bárbaras ou primitivas.
No entanto, o filme apresenta tal lógica de forma simplista. À medida que a narrativa avança, a visão de mundo de Santiago começa a ser questionada. No início da trama, ele é essencialmente um padre dominicano firmemente ancorado em sua fé cristã, acreditando na missão civilizatória e redentora do cristianismo sobre os “povos pagãos” do Novo Mundo. Tudo muda em sua experiência na América. Ao experimentar a vida entre os índios caribenhos, Santiago se vê imerso em uma cultura completamente distinta, com valores, crenças e práticas que desafiam suas convicções religiosas e morais.
O choque cultural que Santiago experimenta é um dos pilares narrativos de “Jerico”. Ao ser forçado a viver entre os indígenas, ele não apenas observa, mas vive suas tradições e modos de vida. Essa imersão proporciona a Santiago uma perspectiva íntima e pessoal sobre a cultura indígena, que vai além dos estereótipos e preconceitos iniciais. O que ele descobre é uma sociedade com sua própria complexidade, espiritualidade e sabedoria, muitas vezes ignorada ou menosprezada pelos europeus.
Esse encontro com o outro, no caso, a cultura indígena caribenha, serve como um espelho que reflete as falhas e limitações do etnocentrismo europeu. Santiago começa a perceber que sua visão de mundo, antes tida como absoluta, é apenas uma entre muitas. Ele se depara com a pluralidade cultural e a riqueza das tradições indígenas, que não precisam ser medidas ou validadas pelos padrões europeus. Essa experiência provoca uma profunda transformação interna no personagem, que se vê forçado a reavaliar sua fé e o propósito de sua missão.
Tal crise de fé não é apenas pessoal, mas também representa uma alegoria para o questionamento das narrativas eurocêntricas que justificaram a colonização. A fé de Santiago, antes vista como inabalável, começa a ruir à medida que ele percebe a arrogância e a violência implícitas na sua missão de conversão. Este conflito interno reflete um dilema existencial: até que ponto as crenças que sustentamos são verdades universais, e até que ponto são construções culturais sujeitas ao erro e à revisão?
A transformação de Santiago pode ser vista como uma desconstrução do etnocentrismo europeu, algo que o filme explora de maneira sutil, mas eficaz. Ao invés de converter os indígenas ao cristianismo, Santiago passa por uma espécie de “reverso da conversão”. Ele é quem acaba sendo “convertido” em certo sentido, não a uma nova fé, mas a uma nova compreensão do mundo. Ele começa a reconhecer a validade e a profundidade da espiritualidade indígena, percebendo que sua própria visão de mundo era limitada e, em muitos aspectos, preconceituosa. A desconstrução do personagem principal é um dos aspectos mais poderosos de “Jerico”. Esse processo reflete um reconhecimento da necessidade de diálogo intercultural e uma crítica à postura colonizadora que procura impor sua visão de mundo sobre os outros.
O grande mérito do filme, enfim, é a abordagem em torno da profunda transformação de Santiago, que se vê em um processo de desidentificação com os valores coloniais que antes defendia. O questionamento sobre quem de fato ele é fora das vestes sacerdotais, fora da narrativa cristã que o define, tem grande relevância. E é bem contemporânea. Afinal, a busca por uma identidade mais autêntica e menos condicionada pelas imposições culturais é um tema que ainda reverbera nas discussões modernas sobre identidade, principalmente em contextos de diáspora, colonialismo e globalização.
O filme, em espanhol, você pode conferir a seguir:
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.