Micro-História: compreendendo uma perspectiva inovadora

História em Rede
11 min readJan 30, 2019

--

O Surgimento da Micro-História

Do pós-guerra até meados da década de 1970, a pretensão de alcançar uma “história total” era uma marca indelével da historiografia. Tendo os Annales e o marxismo como principais influências, a história social tradicional estava pautada principalmente na longa duração e na análise serial de volumosa documentação, o que acabava por resultar em interpretações generalizantes, quantitativas e voltadas prioritariamente para uma escala de observação específica: a macro. Buscava-se, acima de tudo, a regularidade dos fenômenos sociais, explicados a partir de modelos interpretativos que pretendiam acessar o todo a partir das partes, partes estas que poderiam ser generalizadas. Dentro dessa perspectiva, a concepção de sociedade se resumia a um conjunto fechado, homogêneo e coerente, de modo que as ações e o comportamento dos indivíduos eram determinados por um esquema mais amplo pré-estabelecido. Seja por um sistema normativo ou por uma estrutura formada ao longo do tempo, fato é que havia uma macroestrutura que sujeitava a ação dos sujeitos. Enfim, tratava-se, pois, de uma totalização cartesiana, adequada expressão utilizada por Lepetit para se referir aos anseios dessa historiografia.

Todavia, a partir da década de 1970, os modelos estáticos e abstratos que davam pouco peso ao protagonismo dos indivíduos enquanto agentes históricos passam a ser o principal alvo das críticas a esse estruturalismo reinante. Da frustração de historiadores que atentavam para o fato de que a realidade estudada não se enquadrava necessariamente aos modelos macroestruturais, surgiu um renovado interesse pelo papel dos indivíduos na História e por casos específicos que remetiam a uma realidade até então não percebida pelas explicações gerais e totalizantes. Nesse sentido, a aproximação da História com a Antropologia foi essencial não apenas por redimensionar o protagonismo dos indivíduos, mas por levar ao interesse de temas até então pouco explorados pela história serial e pela história social tradicional.

É dentro deste contexto que um grupo de historiadores italianos ligados à revista Quaderni Storici, fugindo do fatalismo dos grandes modelos, passam a focar uma outra escala de observação: a micro. Reunindo historiadores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Edoardo Grendi, o objetivo não seria mais buscar explicações generalizantes que pudessem ser aplicadas a qualquer contexto, mas empreender um estudo intensivo a partir de casos específicos, comunidades, grupos familiares ou mesmo indivíduos que permitissem uma melhor compreensão da realidade. A micro-história, nome que esse movimento recebeu posteriormente, propunha, portanto, “pensar a partir da amostra”.

Delimitando fronteiras (ou o que Micro-História não é)

Esta proposta, que forneceu contribuições importantes para o fazer historiográfico, não raro foi confundida e mal compreendida. Por vezes entendida de modo apressado e superficial, essa vertente analítica se diferencia de outras perspectivas que, embora próximas, possuem suas próprias especificidades. Vejamos.

✓ Micro-História e História Local não são a mesma coisa

Enquanto a História Local trabalha com um recorte regional específico, focando a análise de um determinado espaço em uma dada temporalidade, a Micro-História reduz a escala de observação privilegiando o plano específico, o que não significa dizer que o objeto de estudo remeta necessariamente a um recorte espacial, mas sim a algum elemento que o historiador considere relevante para compreender melhor a questão que investiga em sua pesquisa. A análise da vida de um indivíduo ou de uma família que conviveu em diferentes espaços, transcendendo os limites espaciais da localidade, é um bom exemplo de como a análise micro-historiográfica se diferencia da História Local.

✓Micro-História não é Biografia

Se a Biografia está preocupada acima de tudo com os diferentes aspectos referentes a uma vida específica, destacado a relevância e as realizações de um indivíduo, a Micro-História nunca perde de vista a conexão do micro com o contexto no qual este se insere, se valendo de um para compreender o outro. Há sempre a preocupação com o contexto social e/ou cultural no qual os indivíduos estão inseridos. Não à toa, quando se estuda a trajetória de um determinado sujeito, mais importante do que meras curiosidades biográficas, são as relações sociais estabelecidas por esse indivíduo que mais interessam aos micro-historiadores, de modo que elas constituem a porta de entrada para compreender melhor a sociedade em que elas ocorrem. Assim sendo, não se trata, portanto, da análise do caso, mas a partir do caso.

✓A Micro-História não se resume ao estudo do episódico, do particular, do específico

Como ressaltou Alban Bensa, a intenção da Micro-História não é, através da redução da escala de observação, buscar a supremacia do individual, mas sim compreender a relação entre o “micro” e o seu contexto, dando relevância a articulação entre a experiência particular e a ação coletiva. Ao invés de uma História preocupada com as migalhas, este viés interpretativo parte de uma escala diferente para compreender a realidade.

Os Procedimentos da Micro-História

Apesar de não haver uma proposta única e definidora no que diz respeito a esta proposta historiográfica, fato bem observado por Jacques Revel, é possível elencar alguns procedimentos recorrentes em estudos que adotam essa abordagem. Tais procedimentos, evidentes nos trabalhos dos principais micro-historiadores, são essenciais para uma melhor compreensão desta proposta, permitindo perceber a diferenças em relação às abordagens mais tradicionais da história social.

1) "O Universo Relacional"

Um primeiro ponto a se considerar é que, ao elaborar um trabalho no âmbito da micro-história, o historiador, como ensinou Edoardo Grendi, deve tratar do “universo relacional”, ou seja, do campo das relações interpessoais forçosamente válido para uma microárea. Para isso, é essencial realizar uma pesquisa intensiva, dando conta de uma diversidade de fontes que explicitem as relações sociais. Esse é um caminho importante a fim de revelar a multiplicidade de relações que se desenrolavam em um determinado “microcosmo”. Nesse sentido, o “nome” é fundamental para a realização de tal mapeamento. A utilização do método nominativo, que tem como objetivo buscar o rastro do indivíduo nas fontes, possui um papel de grande relevância ao conduzir às redes sociais nas quais aquele “nome” está inserido. Não à toa as fontes paroquiais são essenciais para o estudo do “universo relacional”: através dos registros de batismos, de casamentos e de óbitos é possível descortinar uma infinidade de relações que fornecem informações preciosas para entender melhor a sociedade de uma dada região. E, como lembra Grendi, o seu cruzamento com outros tipos de fontes, como as cartoriais, é imprescindível para revelar as várias facetas que essas relações poderiam ter. Só assim o pesquisador é capaz de passar do “concreto total” para o “concreto vivido”, de modo que a dinâmica das relações remete não para uma sociedade petrificada, mas em movimento. Assim sendo, ao considerar o nome e as variadas relações sociais que o envolvia, é possível delinear os diversos pertencimentos do sujeito em questão.

2) Recuperando o dinamismo das relações sociais

No que diz respeito às relações sociais, a abordagem micro-historiográfica tem ainda um papel importante ao recuperar o dinamismo das mesmas. Ao invés de fixas ou apenas o reflexo de um esquema determinado e específico, a Micro-História parte do pressuposto que as relações sociais não estão dadas, mas que se constroem a partir dos múltiplos agentes envolvidos. A esse respeito, nunca é demais lembrar que a micro-análise considera o imprevisto, o que implica dizer que os sujeitos fazem escolhas que não se restringem a um esquema pré-estabelecido por um sistema normativo. Ao invés disso, os indivíduos estão limitados por diversas obrigações que, muito embora não determinem as suas ações, as condicionam. E é justamente através dos vários pertencimentos, das várias redes nas quais o indivíduo se insere, que é possível ao pesquisador compreender melhor as obrigações, as restrições, os recursos e as estratégias que levam o ator a agir dentro de uma margem de manobra, de uma gama de possibilidades, que considera ainda a incerteza e a previsão das ações dos indivíduos à sua volta. Portanto, as redes sociais constituem um meio através do qual é possível analisar as ações dos sujeitos.

3) Dimensão Experimental

A dimensão experimental da microanálise é outro aspecto relevante no que diz respeito aos procedimentos adotados em uma pesquisa que segue essa orientação. Ao tentar verificar a aplicabilidade dos modelos macro-estruturais no nível micro, a pesquisa micro-analítica permite ir além de explicações generalizantes, elucidando a complexidade da realidade estudada. Mesmo que esse modelo não seja refutado, ele será ao menos enriquecido a partir da microanálise, tendo em vista que uma outra escala de observação possibilita atentar para elementos que na maioria das vezes passam despercebidos em uma perspectiva mais ampla. Nesse sentido, o estudo de Giovanni Levi sobre a Itália na passagem do século XVII para o XVIII é emblemático: ao analisar as relações de matrimônio e a estrutura familiar em Santena, Levi destaca que a perspectiva marxista de acumulação primitiva de capitais não dá conta de explicar o caso italiano, concluindo que as lógicas de manutenção do status e a de autoconsumo eram mais valorizadas nessa sociedade do que o enriquecimento ou a acumulação. Não há dúvidas, portanto, de que este caráter experimental, ao testar duas escalas distintas de observação, conduz a uma análise mais complexa da realidade, trazendo à tona novos problemas e questões.

4) Redimensionando o papel do indivíduo

Ao invés de partir de uma hipótese geral e de conceitos previamente estabelecidos que enquadram a realidade, a exemplo do que faz a história social tradicional, a micro-análise considera acima de tudo a experiência e a atuação dos indivíduos. Com a micro-análise, o indivíduo deixa de ser um número na média estatística para ser um sujeito que age, pensa, formula estratégias e tem uma visão de mundo própria. Nesse sentido, o micro-historiador deve empreender o esforço de analisar o âmbito social através dos indivíduos e de suas ações, e não mediante padrões de comportamento formulados de cima, do nível macro. Se essa preocupação patente na micro-análise tem o grande mérito de trazer à tona o microcosmo, sublinhando o microssocial, ele também tem papel fundamental de destacar que os sujeitos, os objetos de pesquisa, são capazes de incidir sobre o plano geral dos conceitos. Assim sendo, como bem lembrou Lepetit, os agentes passam a interferir no primeiro nível da pesquisa – o nível macro, das grandes hipóteses – de maneira que o micro – o segundo nível da pesquisa – longe de se resumir a uma parte integrante e obediente a um todo homogêneo, acaba por interagir diretamente com as hipóteses e os conceitos gerais, conduzindo inevitavelmente a reavaliações. Na micro-análise, portanto, as hipóteses prévias não subordinam a realidade a ser estudada, mas são condicionadas pelas ações e trajetórias dos próprios sujeitos estudados.

5) Análise no Movimento

Enquanto uma perspectiva estruturalista estuda o movimento, visto a partir de fora e explicado mediante impressões obtidas através de uma observação externa, a análise micro de um movimento social estuda no movimento, ou seja, atenta para as ações, as motivações e as estratégias das pessoas que compunham esse movimento, partindo sempre dos atores sociais pertinentes. Dessa maneira, considerar a experiência dos sujeitos significa romper com determinados anacronismos advindos de uma análise externa, de fora do contexto a ser estudado, que na maioria das vezes se resume a adequação da realidade às hipóteses do pesquisador. A esse respeito, as observações feitas por Cerutti são pertinentes quanto ao procedimento adotado em uma pesquisa micro-analítica: ao invés de conceitos formulados previamente, busca-se recorrer a conceitos percebidos a partir de meticulosas análises centradas nos indivíduos e em suas trajetórias sociais. Para o micro-historiador, enfim, as fontes não revelam a estrutura social, mas sim as práticas dos indivíduos, de maneira que serão nas próprias fontes que o pesquisador buscará conceitos a serem utilizados com o intuito de entender como os indivíduos agiam e qual era a visão de mundo que os orientavam.

6) Recuperando a racionalidade dos sujeitos

Centrar a análise nas ações e nas relações dos agentes sociais permite trazer à tona as razões e as motivações que levaram esses indivíduos a agirem de tal maneira, indo além de uma perspectiva que concebe o comportamento dos sujeitos como uma simples resposta a um sistema normativo. Isso quer dizer que as ações dos indivíduos não estão pré-determinadas, sendo antes resultado das escolhas feitas a partir de parâmetros específicos, de modo que estes parâmetros, mais do que apontar para as escolhas dos sujeitos, informam e muito sobre a realidade social na qual esses sujeitos estão inseridos.

Considerações Finais

Quando Ginzburg afirmou que não seria descabido prever que no futuro as trocas entre a historiografia italiana e a historiografia francesa seriam menos desiguais, ele não poderia ter sido mais certeiro. Se outrora a historiografia francesa era a grande referência para os historiadores italianos, com a micro-história esse situação mudou, de modo que essa perspectiva passou a seduzir cada vez mais os historiadores franceses. Muito embora a influência italiana tenha sido apropriada pelos franceses a sua maneira, parece claro, sobretudo a partir de trabalhos de historiadores como Jacques Revel, que a abordagem micro-histórica deixou marcas no campo intelectual francês, evidente, por exemplo, na coletânea “Jogos de Escala”.

A Micro-História, que inicialmente ocupava uma posição periférica inclusive na historiografia italiana, ganhou espaço e se espalhou pelo mundo. Essa difusão da micro-história e de seus procedimentos, que se deu de forma crescente a partir da década de 1980, teve um impacto significativo sobre a historiografia, deixando marcas que até hoje se fazem sentir. Uma dessas marcas é a atenção dada a temas até então pouco estudados, recorrendo a uma multiplicidade de fontes analisadas a partir de renovados referenciais teórico-metodológicos.

Enfim, como os Annales de outrora, a Micro-História teve um impacto de peso na historiografia. Mesmo que não tenha sido responsável por criar uma escola ou um movimento unido e coeso, não dá dúvidas que os procedimentos da micro-história influenciaram a forma de fazer história a partir de então. Ao valorizar o micro como uma importante escala de observação, essa abordagem permitiu outra visão sobre a realidade social, enriquecendo e muito a análise ao contemplar aspectos geralmente imperceptíveis em uma escala mais ampla.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

Referências Bibliográficas

BENSA, Alban. “Da micro-história a uma antropologia crítica”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

CERUTTI, Simona. “Microhistory : Social Relations versus Cultural Models?”, in: CASTRÉN, A. M., LONKILA M. et PELTONEN M. (org.). Between Sociology and History. Essays on Microhistory, Collective Action, and Nation-Building. Helsinki: S.K.S., 2004.

GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1991.

GRENDI, Edoardo. “Microanálise e História Social”, In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro & ALMEIDA, Carla Maria Carvalho. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.

LEPETIT, Bernard. “La société comme um tout :sur trois formes d’analyse de la totalité sociale”, In: Les Cahiers du Centre de Recherches Historiques, 22, 1999.

LEVI, Giovanni. Centro e Periferia di uno Stato Assoluto. Turin: Rosemberg & Seller, 1985.

REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”. In: ______ (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p.21.

--

--

História em Rede
História em Rede

Written by História em Rede

Espaço dedicado a divulgar o conhecimento histórico ao grande público e a refletir sobre a importância da História.

No responses yet