Novo livro resgata Revolta Indígena desconhecida ocorrida no Brasil Colonial

História em Rede
5 min readSep 14, 2021

Abordando a maior revolta indígena do Espírito Santo e uma das mais importantes do Brasil Colonial, o livro Insurgentes Brasílicos: uma comunidade indígena rebelde no Espírito Santo Colonial já está disponível aos interessados em saber mais sobre o histórico de resistência dos povos originários. A rebeldia ainda é pouco conhecida entre o grande público, não constando em materiais didáticos ou em manuais historiográficos. E é para preencher esta lacuna que o livro chega. Além de aprofundar a história da capitania do Espírito Santo no período colonial, a obra, que conta com 14 capítulos, evidencia um importante movimento que precisa ser divulgado para iluminar as lutas indígenas do presente.

Mas, afinal, que revolta foi esta? Motivada principalmente pela luta contra o regime de tutela que os jesuítas exerciam em relação aos aldeados, a insurgência foi uma das maiores manifestações de resistência dos povos originários ocorrida no período colonial. Reritiba, célebre aldeamento jesuítico onde o padre José de Anchieta viveu os seus últimos dias, foi palco de um conflito de grande dimensão. A missão, que sempre se destacou como uma das principais da capitania, cumprindo papel importante como centro de onde partiam expedições que visavam o descimento de índios dos sertões, viveu momentos turbulentos desencadeados por um episódio aparentemente banal.

No dia 29 de setembro de 1742, o que era para ser um festejo transformou-se em um levante. Durante a celebração do dia de São Miguel, que costumava ocorrer em Reritiba todos os anos, uma briga começou após um estudante da Companhia de Jesus, Manuel Alves, ter repreendido o índio Fernando Silva em virtude de seu “comportamento inconveniente” durante a solenidade.

A rusga inflamou os ânimos dos aldeados, que tomaram partido do índio Fernando. Na tentativa de apaziguar a contenda, os missionários do aldeamento foram substituídos por outros missionários, vindos da região dos Goitacazes. A recepção dos índios em relação aos novatos, porém, foi hostil, obrigando os padres recém-chegados a se refugiarem na fazenda jesuítica de Muribeca. Diante do impasse, a situação foi momentaneamente solucionada com a intermediação de Antônio Siqueira de Quental, arcediago do Rio de Janeiro, que conseguiu convencer os índios a aceitarem os novos missionários. Sem oposição, eles assumiriam suas funções no dia 24 de janeiro de 1743.

Este não seria, no entanto, o fim do conflito. Nas entrelinhas dos documentos disponíveis sobre o episódio, as razões das tensões em Reritiba revelam-se mais complexas, sugerindo que a revolta ia muito além de um mero desentendimento. Embora o desgaste na relação entre os missionários e os aldeados fosse o suficiente para gerar tensões em Reritiba, disputas internas entre os índios e o interesse de pessoas de fora do aldeamento contribuíram para a retomada da revolta na região — inclusive podemos perceber pistas de tensões entre colonos e jesuítas. Com o apoio de moradores de Guarapari, um grupo liderado pelo índio Manuel Lobato, tinha ido se encontrar no calor dos acontecimentos com o ouvidor-corregedor do Espírito Santo, Paschoal de Veras, na vila de São Salvador. Lá eles receberam o aval do ouvidor-corregedor do Espírito Santo, interessado em reduzir a influência exercida pela Companhia de Jesus em sua jurisdição, para expulsar os jesuítas e assumir funções de mando na aldeia.

O bando retornou à Reritiba dois dias após a posse dos novos missionários. Dispostos a fazer valer as ordens que receberam do ouvidor-corregedor, o grupo chefiado por Manuel Lobato deixou a aldeia em pé de guerra. Um violento confronto se sucedeu no local, dividindo os índios entre aqueles que se mantiveram leais tanto aos jesuítas, quanto às lideranças indígenas já estabelecidas, e os que apoiavam as pretensões do bando de Lobato. Mesmo diante da intervenção das autoridades, o conflito se arrastou até 1746. Após diversas mortes e a prisão de alguns líderes do levante, incluindo o próprio Manuel Lobato, deportado para a colônia de Sacramento, a situação chegou a ser controlada em Reritiba a partir de ações autorizadas pela Coroa portuguesa e os missionários puderam retornar. Contudo, a sedição dividiu de vez o aldeamento: insatisfeitos com a volta dos padres e com os rumos dos acontecimentos, um grupo significativo de índios desertou da missão, fundando a comunidade indígena de Orobó.

E a relevância de Orobó não pode ser subestimada. Pelo contrário: a comunidade indígena rebelde era considerada pelas autoridades como um grande perigo. Uma ameaça comparável ao Quilombo de Palmares. Era assim que o Conde das Galvêas, então vice-rei do Brasil, expressava em uma carta a sua preocupação com o conflito que deu origem a comunidade indígena rebelde de Orobó. Para o vice-rei, a comunidade era um desastre para os interesses da colonização. Além de ser um entrave para a evangelização dos nativos e privar a Coroa portuguesa dos inúmeros serviços que os aldeados prestavam, ela representava algo mais perigoso: um exemplo a não ser seguido. O Conde temia que os demais aldeamentos, até então ordeiros e pacíficos segundo ele, seguissem o mesmo caminho iniciado em Reritiba, espalhando conflitos pela América portuguesa. Em seu receio, ele chegou inclusive a admitir a possibilidade de que os aldeados em revolta se aliassem aos muitos índios que viviam nos sertões, contrariando uma das principais funções dos aldeamentos: ser “os antemuros do gentio bárbaro”. Despertando o temor entre os colonizadores e expressando uma alternativa de vida para os indígenas frente à colonização, a comunidade tornou-se um símbolo de autonomia para os nativos, existindo, e resistindo, por quase vinte anos.

Resgatando uma das mais importantes manifestações de resistência dos povos indígenas no Brasil, Insurgentes Brasílicos chega como uma obra necessária para evidenciar a relevância da luta histórica dos povos originários em busca de suas demandas e direitos. Uma luta, acima de tudo, pela autonomia diante dos regimes de tutela que até hoje atormentam estes povos. O caso de Orobó torna claro, enfim, o protagonismo dos índios frente à política de aldeamentos, comprovando que os aldeados, mais do que objetos da dita política, foram capazes de agir conforme os seus próprios interesses e motivações. Uma obra imperdível.

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