Os Super-Heróis como propaganda de Guerra: os quadrinhos e a Segunda Guerra Mundial

História em Rede
6 min readJan 1, 2019

--

Capa da primeira edição de Capitão América, publicado em 1941.

Após a Grande Depressão, em 1929, os EUA passavam por um delicado processo de recuperação econômica e se apegaram a uma política isolacionista. Quando a Segunda Guerra Mundial explodiu na Europa, o clima do país era de não-envolvimento em uma guerra distante, custosa e que não dizia respeito à América. O governo Roosevelt, entretanto, via que o envolvimento do país no evento seria uma questão de tempo. Paralelamente, uma inovação nos quadrinhos norte-americanos rompe com a inflação de histórias de “mocinho e bandido” que abundavam as hqs na década de 1930. Das mãos de Joe Shuster e Jerry Siegel surge o primeiro super-herói. Dotado de poderes sobre-humanos e um forte senso de justiça, o Super-Homem emerge como um símbolo do ideal estadunidense em um momento de recuperação da confiança e da economia. Na esteira de seu sucesso surgiram muitos outros e, com o desenrolar da Guerra, os super-heróis seriam massificados e posicionados em relação ao conflito.

Os Quadrinhos como comunicação de massa

A sintonia dos super-heróis com a Guerra foi notável e as histórias possuíam tanta propaganda norte-americana que pareciam subsidiadas pelo governo. O apelo patriótico e a defesa dos valores estadunidenses passam a ser marcas das hqs ao longo de todo o conflito. Isso fica claro nos uniformes, nos discursos e mesmo nos nomes, sendo o Capitão América o mais emblemático.

Essas representações estimulavam o nacionalismo e a mobilização da sociedade. Mesmo antes do país entrar na Guerra, as aventuras, em geral, já giravam em torno de espionagens e de invasões ao território norte-americano por nazistas e japoneses, que eram apresentados como os inimigos da liberdade e da democracia. Além disso, a figura de Hitler foi sempre associada com a de responsável pelo conflito. Tais histórias buscavam mostrar quem eram os “bons” e os “maus” e cumpriam bem o papel de aproximar a guerra dos leitores, sinalizando que a mesma iria ao encontro dos EUA.

Super-heróis criados antes do conflito mundial (primeira linha) e os “Filhos da Guerra” (segunda linha). Estes últimos se distinguem por caracterizações e enredos fortemente patrióticos e diretamente vinculados com a Segunda Guerra Mundial.

O alcance desses quadrinhos, desde o princípio, mostrou-se amplo, podendo ser verificado a partir da repercussão de uma história do Super-Homem publicada na revista Look, de fevereiro de 1940. Nela, o homem de aço acabava com a Guerra em duas páginas, capturando Hitler e Stálin e os deixado sob custódia da Liga das Nações. Gobbels, ministro da propaganda nazista, chamou o personagem de judeu ao ler a História. O jornal oficial da SS, por sua vez, classificou Jerry Siegel, o escritor de Super-Homem, como sendo física e intelectualmente circuncidado.

Na revista National Comics, o herói patriótico Uncle Sam entra em ação contra soldados alemães que bombardearam a base norte-americana de Pearl Harbor. Coincidentemente, a revista foi lançada alguns dias antes do ataque japonês à Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941.

O ataque à Pearl Harbor pelos japoneses, em dezembro de 1941, muda os rumos da Guerra e da política dos EUA. Roosevelt declara guerra ao Japão e, pouco depois, Hitler faz o mesmo contra os Estados Unidos. O impacto sobre os quadrinhos é imediato, e a maior parte dos super-heróis se alista e vai para o campo de batalha. Os personagens tornam-se mais agressivos, com as histórias passando a glamourizar os combates e a valorizar os militares. Nessas representações nota-se uma forte apologia ao alistamento militar.

A entrada na Guerra é justificada pelos quadrinhos como forma de preservar a liberdade e a paz mundial. De novo o Capitão América sintetiza esse discurso: seu escudo simbolicamente expressa a ideia de que esses são valores a serem defendidos. Apresentando os países inimigos como totalitários, as histórias passam a sinalizar que invadi-los é inevitável. Soma-se a isso as representações dos soldados do Eixo como monstros sádicos, que tinham como intenção desumanizá-los e reforçar ainda mais a condição de inimigos.

Ironicamente, é curioso perceber que muitos super-heróis compartilhavam ideais valorizados por seus inimigos. Dentre eles, estão o de resolver os problemas pela força, o da dominação do mais forte sobre o mais fraco e, no caso nazista, a ideia de um homem superior que os super-heróis representam tão bem.

Trecho da Revista Look (fevereiro de 1940), na qual o Super-Homem soluciona a Segunda Guerra Mundial.

“Faça sua parte para a vitória!”

Ao entrar na Guerra, os EUA voltam sua economia para as necessidades do front. A mobilização da sociedade por meio de propagandas do governo foi essencial. O estímulo ao envolvimento do público fez com que, um ano após Pearl Harbor, a produção de guerra igualasse a da soma de todos os países do Eixo e, já em 1943, estivesse à frente. Além disso, em dezembro de 1941 o governo passou a emitir bônus de guerra para financiar os custos do conflito e a estimular a coleta e o racionamento de bens indispensáveis.

Os quadrinhos de super-heróis colaboraram para tal. O discurso era de que os leitores podiam ajudar o seu país. O enaltecimento das pessoas envolvidas com o esforço de guerra torna-se comum, fato que as colocam entre os alvos preferidos dos vilões. O estímulo para a colaboração dos leitores não estava implícito apenas na história, mas era reforçado por conselhos dos personagens. O apelo para a participação feminina nesses “home fronts” é intensa e assimilada pelos quadrinhos com a proliferação das super-heroínas.

Não muito diferentes serão as representações em relação à coleta e ao racionamento. Os super-heróis passam a lidar com esta situação rotineiramente e o apelo ao público é ainda mais contundente. Busca-se mostrar a importância de determinados itens e transmitir a ideia de que os leitores-mirins podem ser parte da guerra, assim como seus ídolos.

O forte incentivo às compras dos bônus de guerra também estava estampado nas capas e ao longo de toda história. A mensagem era clara: o apoio da sociedade era fundamental para garantir a vitória contra o Eixo.

Os Super-Heróis incentivam os leitores a se comprometerem com o esforço de guerra.

O Pós-Guerra

Entre 1940 e 1945 cerca de quatrocentos super-heróis foram criados. As hqs exploraram os diversos momentos da guerra, envolvendo os leitores com a mesma. Mas, com o fim do conflito, nem todos sobreviveram.

Evolução do envolvimento dos super-heróis com a guerra a partir de capas de revistas. Num momento inicial pouco ou nenhum envolvimento (Detective Comics #1), oposição inicial ao Eixo (Pep Comics #22), convocação do país à Guerra (Captain Marvel #5), os super-heróis nas frentes de batalha (Exciting Comics # 35) e os momentos finais da Guerra (Green Lama #6).

Depois de dezesseis anos conturbados de Depressão e Guerra, o público diminuiu o interesse pelas histórias agitadas. Analisando as revistas é possível constatar o reflexo deste contexto sobre os personagens. Muitos foram os que, no imediato pós-guerra, tentaram se adaptar à nova realidade social. Alguns passaram a ter preocupações mais cotidianas, casando e constituindo famílias. Outros tiveram seus enredos e motivações alteradas para estarem sintonizados com os novos tempos.

Mas, no imaginário dos leitores, a maioria dos personagens estava tão vinculada ao período de guerra, do enredo à forma de se vestir, que seria difícil os verem de outra maneira, e as tentativas de adaptações acabariam implicando em novos personagens. O resultado foi o cancelamento de muitos desses super-heróis. Nem o maior ícone escapou: o Capitão América foi para a geladeira. Literalmente: com a popularidade em queda, o personagem acabou congelado no Ártico e só seria resgatado mais de uma década depois.

Após a guerra, alguns super-heróis buscam se adaptar à nova realidade e passam a contar com histórias mais cotidianas. Alguns, inclusive, passam por grandes modificações : o Spy Smasher, com o fim da Guerra, deixa de correr atrás de espiões e se dedica a combater o crime.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

Breve Cronologia

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. A indústria Cultural. In: COHN, Gabriel (Org.). Comunicação e Industria Cultural. São Paulo: Nacional, 1978.

HOBSBAWN, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995.

LUYTEN, Sonia M. Bibe (Org.). Histórias em quadrinhos : leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas, 1989.

MARNY, Jacques. Sociologia das histórias aos quadrinhos. Portugal: Civilização Brasileira, 1970.

PARKER, R.A.C. História da segunda guerra mundial. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.

PIMENTEL, Sidney Valadares. Feitiço contra o feiticeiro : Histórias em quadrinhos e manifestações ideológicas. Goiânia: Ed. UFG, 1989.

--

--

História em Rede

Espaço dedicado a divulgar o conhecimento histórico ao grande público e a refletir sobre a importância da História.