Paviljon VI: autoritarismo e existencialismo na Rússia czarista

História em Rede
3 min readMar 18, 2020

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“Paviljon VI" ou, traduzindo do sérvio, "Enfermaria 6", é um filme de origem iugoslava produzido em 1978, ainda no tempo do regime socialista de Tito. A película é baseada em um conto de Chekov e faz uma bela analogia à vida sob a égide de governos autoritários e limitadores das liberdades individuais, particularmente em relação à Rússia czarista.

O enredo, apesar de simples, é cativante. Na Rússia da era dos Czares, um médico de um pequeno hospital encontra um ex-aluno na ala reservada aos doentes mentais. O paciente, que nada tem de louco e vive enclausurado na "enfermaria número 6", é notadamente rebelde, não se cansando de vociferar sua filosofia libertária. O médico, em contrapartida, apesar de caracterizar-se por um pensamento individualista e utilitarista, desenvolve grande fascinação pelo paciente. Mesmo acreditando ser intelectualmente superior a todos do hospital, o médico começa a nutrir respeito e admiração por este paciente, que está ali por ser um prisioneiro político. Aos poucos, ambos travam grandes diálogos filosóficos a respeito da vida e da realidade na qual estão inseridos, o que acaba por influenciar decisivamente o médico em suas reflexões. Isto, porém, chama a atenção de seus colegas de profissão, que estranham este contato tão próximo entre médico e paciente.

O grande mérito da obra é trazer à tona e discutir questões existenciais de indiscutível relevância, como o vazio da vida, a falta de sentido da mesma e a necessidade de apego das pessoas a um falso conforto psicológico na ideia de Deus. Mantendo-se fiel ao conto de Chekov, mas mantendo um estilo próprio, o filme consegue agradar pela sutileza com que trata questões tão complexas.

A direção de Lucian Pintilie é muito competente, dando destaque acima de tudo para o intenso debate entre os dois principais personagens. Sem se valer de grandes recursos técnicos, o filme aposta sobretudo na atuação primorosa dos atores e na condução da trama, que consegue ser envolvente e instigante ao mesmo tempo. Um trabalho realmente muito bom.

Em meio à discussão a respeito do autoritarismo, convém relacionar a produção ao contexto em que ela foi produzida. De maneira implícita, a obra estavelece um paralelo com a própria situação política da Iugoslávia, que naquela altura vivia os últimos anos sob o regime socialista de Josip Broz Tito. Comparação esta que faz muito sentido ao terminarmos de assistir ao filme. Tendo governado a Iugoslávia de 1945 até a sua morte, em 1980, Tito foi o principal líder do regime socialista estabelecido no país. Inicialmente próximo da União Soviética, a Iugoslávia de Tito trilhou progressivamente um caminho autônomo no mundo da Guerra Fria, tornando-se um dos principais representantes do movimento dos países não-alinhados. Apesar da notável experiência da “autogestão”, prática na qual os serviços públicos e as instituições contavam com a participação direta de setores populares, a Iugoslávia de Tito não esteve isenta da censura, de perseguições políticas e da limitação das liberdades individuais. E é essa realidade que serviu de inspiração para a adaptação da obra de Chekov.

O trailer do filme pode ser conferido abaixo:

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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