Quem era o homem que se recusou a saudar Hitler?
Não é difícil perambular pelas redes sociais e se deparar com uma foto icônica sobre o nazismo: o homem que se recusou a saudar Hitler em meio a multidão, cruzando os braços. A saudação, associada a uma demonstração de lealdade ao Führer e de comprometimento com a nação alemã, era entoada junto à expressão sieg hiel, cujo significado em uma tradução livre seria “viva a vitória”. Famosa por celebrizar uma manifestação de resistência, a foto se tornou referência obrigatória para os que se interessam pela história do nazismo, servindo ainda como inspiração para movimentos contrários a governos autoritários no tempo presente. Mas, afinal, quem era o homem que ousou desafiar Hitler e o nazismo?
A primeira pista sobre a sua identidade surgiu muitos anos após a Segunda Guerra Mundial. Isso porque a fotografia veio a público por meio de um artigo veiculado no jornal Die Zeit, em 22 março de 1991. A publicação chegou até Irene Eckler, que não teve dúvidas quando observou o homem de braços cruzados: era o seu pai, August Landmesser. A trágica história de sua família, que durante tanto tempo manteve-se sufocada, finalmente poderia alcançar alguma redenção. Reunindo diversos documentos pessoais, Irene lançou em 1996 um livro que contava a trajetória de seu pai. E quem diria que por trás do famoso ato de resistência estaria uma história de amor?
A vida de August Landmesser (1910–1944), porém, nem sempre esteve do lado oposto ao nazismo. Na verdade, como muitos alemães que viveram nas décadas de 1920 e 1930, ele foi simpático ao nazismo. Chegou, inclusive, a fazer parte do Partido de Hitler. Com dificuldades para conseguir um trabalho, August juntou-se aos nazistas na esperança de remediar os seus problemas. Ele, obviamente, não foi o único. Os nazistas apresentavam-se como a salvação de uma Alemanha que vivia atormentada após os prejuízos da Primeira Guerra Mundial, prometendo o fim do desemprego e melhorias sociais. Crescendo em meio a desolação, as ideias radicais do nazismo foram encaradas como uma solução por muitos. E não foi diferente com Landmesser, que se converteu rapidamente em um típico seguidor de Hitler.
A sua relação com o nazismo não demoraria a estremecer. Em 1934, o rapaz se apaixonou. Mas, ironicamente, a sua amada era proibida: Irma Eckler era uma mulher judia. É difícil saber como Landmesser lidou com essa questão. Provavelmente a sua mente debateu-se entre os princípios nazistas e os sentimentos por Irma. No fim, venceu o amor e o casal se envolveu estreitamente. A sua escolha, contudo, cobrou um preço. Em 1935, o relacionamento chegou ao conhecimento de membros do Partido e August acabou expulso. Esta não seria a única consequência de sua escolha apaixonada. Quando o casal se registrou para confirmar o matrimônio em Hamburgo, ainda em 1935, o pedido foi negado. Era reflexo das Leis de Nuremberg, estabelecidas em 16 de setembro de 1935. As leis, de caráter anti-semita, procuravam resguardar a honra e a pureza racial dos alemães, estabelecendo uma série de restrições aos judeus, negando-lhes a cidadania. Uma das medidas, e que atingiu diretamente Landmesser, proibia casamentos entre alemães e judeus. Vítimas da política descriminatória que ganhava forma na Alemanha, August e Irma permaneceram juntos, mesmo sem ser casados. Em 29 de outubro daquele mesmo ano nasceria a primeira filha do casal, Ingrid.
Chegamos, então, ao ano de 1936, quando a famosa fotografia foi tirada. Mais precisamente no dia 13 de junho. A foto retrata uma grande concentração de trabalhadores do estaleiro Blohm & Voss, em Hamburgo. August Landmesser, empregado no local, estava entre eles. Realizava-se então um comício nazista para celebrar o lançamento do navio Horst Wessel. Dentre todos os presentes, August teria sido o único a se recusar a fazer a saudação, cruzando os braços em meio a multidão. Um gesto corajoso e ousado, devidamente motivado por sua própria trajetória pessoal.
Apesar da nobre demonstração de resistência, a vida de Landmesser continuava a ser atormentada pelo governo nazista. Em 1937, o relacionamento que ele possuía com Irma, cada vez mais sólido, era público e notório. Ela, a propósito, estava grávida da segunda filha, Irene. Segundo a política racial que vigorava na Alemanha, isto era uma verdadeira afronta à raça ariana, sendo passível de condenação. Temendo pelo futuro de sua família, August tentou fugir com sua esposa e filha para a Dinamarca em julho daquele ano. Não deu certo. Ambos acabaram presos, mas, alegando que não sabiam da origem judia de Irma, o casal acabaria absolvido por falta de provas. Eles foram instruídos, no entanto, a não manterem mais qualquer relação.
O amor de August falou mais alto do que o medo da punição e ele continuou amasiado com Irma, mesmo diante da determinação proferida. A filha recém-nascida, concebida pouco depois da fracassada tentativa de fuga, também deve ter pesado em sua decisão. Mas o risco era alto e novamente eles seriam denunciados apesar dos cuidados adotados para que o relacionamento ficasse em segredo. Dessa vez os nazistas não foram tão complacentes. Em julho de 1938, ao ser constatado que ele se recusava a deixar a esposa e as filhas, August Landmesser acabou condenado por seu ato. Ele foi enviado para um campo de trabalhos forçados em Borgermoor por 30 meses, separando-se de sua família, o que August tanto havia relutado. Acostumado com os dessabores causados pelos nazistas, provavelmente ele manteve a esperança de reencontrá-las. No entanto, o momento da despedida foi a última vez que ele esteve com sua companheira e filhas.
Pouco depois da prisão de August, Irma foi vítima da perseguição nazista. Como a lei previa que a mulher de um homem condenado por “desonrar a raça” também seria presa, ela caiu nas garras da Gestapo, a temida polícia secreta nazista. Transitando entre presídios e campos de concentração, Irma seria privada da convivência com as filhas. A filha mais velha, Ingrid, foi mandada para um orfanato por um curto período, até que teve autorização para viver com os avós paternos. Irene, por sua vez, foi concedida a pais adotivos. A agonia de Irma no campo de concentração se estendeu até fevereiro de 1942, quando ela foi morta na câmara de gás em Bernburg. Estima-se que 14 mil pessoas morreram nessa oportunidade.
August Landmesser foi libertado em janeiro de 1941, mas jamais conseguiu se reunir novamente com sua mulher ou filhas. Novamente em liberdade, August conseguiu emprego como capataz em uma empresa de transporte, na cidade de Warnemünde. Mesmo assim, a sua vida jamais seria a mesma. É possível que ele tenha se esforçado para entrar em contato com os seus familiares, sem sucesso. O seu destino, entretanto, seria trágico. Em fevereiro de 1944, diante da enorme demanda de soldados por parte do Exército Alemão, cada vez mais esgotado e em franca decadência, ele foi convocado para compor um batalhão penal. Pouco se sabe sobre a sua participação na guerra, mas ele foi dado como desaparecido em 17 de outubro de 1944, quando lutava na Croácia. O seu corpo nunca foi encontrado, mas ele foi considerado morto em 1949.
A história trágica foi em grande parte narrada no livro que Irene publicou após reconhecer o seu pai na fotografia. E o título da obra, A Lei de Tutela 1935–1958: perseguição de uma família por “desonrar a raça”, não poderia ter sido mais adequado. Como muitos sobreviventes do Holocausto, as filhas Irma e Irene carregaram marcas profundas da perseguição e da descriminação impostas pelo governo de Hitler. Vivendo em orfanatos ou junto à famílias adotivas, restavam apenas breves lembranças da vida com seus verdadeiros pais. O amor do casal, porém, desafiou a morte: em 1951, o Senado de Hamburgo reconheceu o casamento de August Landmesser e Irma Eckler, eternizando a relação condenada pelos nazistas.
Não há consenso, porém, quanto à identidade do homem que se recusou a fazer a saudação nazista. Isso porque a família Wegert reivindica que quem está de braços cruzados é Gustav Wegert (1890–1959). Esse sujeito também trabalhou no estaleiro Blohm & Voss na mesma época em que a foto foi tirada, apresentando semelhança física significativa com o retrato famoso quando comparado com outras de suas fotos. E, ainda mais relevante, ele jamais fazia a saudação nazista. Mas o motivo não era o mesmo de August Landmesser. Cristão convicto, Gustav se recusava a venerar Hitler ou os nazistas, dizendo que “deve-se obedecer a Deus mais do que aos homens”. Sua esposa, inclusive, temia que o marido poderia acabar preso por se recusar a fazer a saudação, razão pela qual ele já havia sido advertido algumas vezes. Mas Gustav a acalmava: por precisar de trabalhadores especializados no estaleiro, a punição nunca ia além da advertência. A sua importância no estaleiro Blohm & Voss o favoreceu inclusive durante a guerra, já que ele nunca chegou a ser alistado.
Até hoje há dúvidas quanto a verdadeira identidade do homem de braços cruzados. A sua atitude de recusa à veneração ultranacionalista típica dos nazistas, porém, é inquestionável. E de algum modo a foto remete tanto a vida de August Landmesser quanto a de Gustav Wegert. Isso porque eles, cada um a sua maneira, ousaram dizer não ao nazismo. Em meio ao fanatismo, ao radicalismo e à violência aviltada em relação àqueles que não concordavam com Hitler ou seus seguidores, era preciso muita coragem para dizer não quando a imensa maioria dizia sim.
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.