Raça, Miscigenação e Identidade Nacional no Folclore de Sílvio Romero

História em Rede
5 min readOct 30, 2019

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Não é raro encontrar hoje referências que consideram o folclore como um conhecimento menor ou pouco relevante. Preocupado com questões pertinentes à cultura popular, o folclore por vezes é relegado ainda à infantilização e à fantasia, não sendo levado a sério. Uma situação que destoa por completo do prestígio que os folcloristas desfrutavam no século XIX, quando eram respeitados pela preocupação que possuíam com as origens dos povos. Reforçado pelo afã do Romantismo oitocentista, o folclore assumia incontestáveis ares científicos. Mas, afinal, que tipo de conhecimento o folclore brasileiro desta época produziu? Para responder a essa pergunta, selecionamos uma obra e um autor que julgamos emblemáticos para compreender as bases do conhecimento folclórico brasileiro. Estamos falando de “Contos Populares do Brasil”, lançado em 1885 e de autoria de Sílvio Romero.

A intenção é de tentar encarar esta obra como uma fonte de conhecimento, elencando suas ideias principais e articulando-as com o contexto em que foi produzida. Neste caso, aspectos como a criação de uma identidade nacional, noções de raça, miscigenação e hierarquia racial não poderiam deixar de ser observados em um estudo sobre o conhecimento folclórico. Para além disso, buscaremos recuperar a trajetória do autor Sílvio Romero, por crermos que esse é um elemento imprescindível para entender sua obra e suas concepções.

Um primeiro ponto que chama a atenção é o fato do autor se valer, como referências para o seu estudo, de tradições, contos, cantigas e poesias coletadas junto a pessoas provenientes de grupos populares, separando-as de acordo com o que ele considera como as três raças formadoras do povo brasileiro. Fica bastante claro que, para Romero, era no seio popular que estaria a essência do povo brasileiro. Há uma passagem emblemática nesse sentido em seu livro “Estudos sobre poesia popular no Brasil”. Nesta obra, Romero assim se referiu à poesia brasileira: “A poesia brasileira, se pretende ser alguma coisa de vívido e real, deve voltar a beber na fonte popular”.

O povo, então, estava no centro das preocupações de Sílvio Romero. Com a atenção voltada para a construção de um caráter nacional, o autor pensa sobre o ser brasileiro. Para ele, as misturas entre as raças branca, negra e indígena ao longo dos séculos deram origem a um homem de novo tipo: o brasileiro. A contribuição de cada uma delas pode pode ser vista por meio dos contos: os dos portugueses estão sempre relacionados à civilidade e à nobreza; os dos indígenas fazem sempre menção à relação com a natureza; e os dos negros exaltam a esperteza. Mas Romero não as vê como tendo o mesmo peso, fazendo uma clara hierarquização. A herança portuguesa é vista como superior e a mais importante na formação do povo brasileiro. A tendência, segundo o autor, em uma perspectiva notadamente evolucionista, era que a herança dos brancos se sobrepõe a das demais raças. Esse ponto de vista está implícito não apenas no texto em si, mas na própria estrutura do livro: os contos portugueses estão em maior número e possuem um destaque que os contos indígenas e dos negros não possuem.

Sílvio Romero vai justamente contra uma ênfase exagerada no indianismo dado pelos românticos oitocentistas. É a mestiçagem, que Romero tanto valoriza, que constitui a especificidade do brasileiro. Não à toa, ele defende o papel do mestiço como agente transformador, aquele que congregou as três raças. Mesmo reconhecendo a preponderância do branco, Romero defende absolutamente a gênese de um novo tipo, cabendo a esse “beber na fonte popular” e não copiar o que chama de modismos exteriores. Em seu livro, “História Literária no Brasil”, o autor expressa isso muito bem: “Suas vantagens [beber na fonte popular] dar-nos a ideia de uma literatura nossa, que os clássicos em sua mofineza nunca poderiam sugerir; jogar-nos para fora os livros portugueses que, continuando a alimentar-nos, levar-nos-iam à mais completa paralisia da inteligência”.

Considerando a trajetória de Sílvio Romero, percebemos que seu nacionalismo está muito ligado a seu lugar social. Oriundo da elite rural de Sergipe, há uma dialética entre o provincial, que defendia o resgate das tradições locais, e o nacionalista, que combate a absorção indiscriminada de estrangeirismo, que caracterizava, aliás, a vida na Corte de D.Pedro II. Esse detalhe, então, ajuda a entender melhor a preocupação de Romero, em construir uma identidade nacional no resgate do popular.

O evolucionismo presente em tantas partes da introdução do livro “Contos Populares”, como o que marca o processo de miscigenação do qual resulta o povo brasileiro, está diretamente relacionado à influência de Charles Darwin, que é citado ao longo do texto. Percebe-se em Romero também uma perspectiva positivista em suas ideias que muito se relaciona ao diálogo que ele estabelece com o pensamento sociológico de Pierre Le-Play, muito preocupado em encontrar, por trás dos fenômenos observados, leis gerais que determinavam a evolução das sociedades. Ele aprofunda mais essa questão, deixando bem claro o seu posicionamento, em uma obra específica intitulada: “Doutrina contra Doutrina: o Evolucionismo e o Positivismo no Brasil”.

É importante perceber também o quanto as posições e as ideias assumidas por Sílvio Romero estão também associadas a sua atuação política e as suas filiações. Ele ocupou cargos políticos desde que era muito jovem, além de ter pertencido aos quadros do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), instituição que se comprometeu com a construção da identidade nacional no século XIX. Portanto, é impensável dissociar seu objetivo de buscar a essência do povo brasileiro de sua trajetória política.

Enfim, cabe acrescentar que através da análise de “Contos Populares”, articulada com a vida de seu autor, é possível chegar a duas importantes conclusões. A primeira é que o folclore, enquanto conhecimento referente à cultura popular, possui claros tons políticos, de modo que a atenção dada por Romero à identidade nacional mostra isso muito bem. A segunda é que, assim como aconselha E.P. Thompson, a pesquisa dos folcloristas pode ser útil quando se toma as devidas precauções e se recupera o contexto de sua produção. E isso porque esses estudos proporcionaram o registro de histórias e costumes populares, o que é de significativa relevância para a compreensão da cultura brasileira.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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