Regimes de Tutela sobre os Índios no Brasil: dos aldeamentos ao Diretório
O recente Projeto de Lei que versa sobre a regulação da mineração e de outras atividades de exploração em terras indígenas tem provocado diversas reações negativas na opinião pública. A proposta prevê a criação de um Conselho formado por nove indígenas (dentre as 225 etnias que existem no país) com poder para definir a exploração das terras, bem como os detalhes pertinentes às atividades. Um dos pontos que mais chamam a atenção nesta proposta é o fato de que este Conselho seria indicado pelo CNPI (Conselho Nacional de Política Indigenista), um órgão ligado à FUNAI.
Esta proposta, que é polêmica e suscita outras discussões em seus mais de 30 artigos, evoca um elemento que marcou a História das populações indígenas no Brasil: a tutela. E com tutela queremos dizer a ideia de que estes povos, considerados incapazes de exercerem seus direitos por si só, são assistidos por terceiros habilitados a dizerem o que é o melhor a se fazer.
É por isso que, ao discutir um projeto que trata diretamente sobre os índios sem consultá-los e prevendo uma participação limitada, além de uma representatividade duvidosa em questões que lhes interessam, corre-se o risco de sujeitar as populações indígenas a uma nova forma de tutela. Esse fantasma da tutela, que historicamente atormentou os indígenas, está diretamente relacionado com a limitação de direitos a estes povos e a uma cidadania que, quando não excludente, foi bastante restrita.
A partir deste projeto de lei temos um fio condutor para uma discussão mais ampla: como os regimes de tutela, e a limitação de direitos implícitos a eles, influenciaram a Historiografia e o Ensino de História a respeito da questão indígena? Para tentar entender isso, é importante começarmos com a apresentação de um breve panorama sobre os diferentes regimes de tutela que sujeitaram as populações indígenas do Brasil ao longo do tempo.
O primeiro destes regimes de tutela data dos primórdios da colonização na América portuguesa: a Política de Aldeamentos. E para entender a sua criação, é essencial observar que o Projeto Colonial previa a inserção das populações indígenas na ordem colonial que se pretendia construir. Não em qualquer lugar social, claro, mas em posições subalternas na hierarquia colonial, algo bem típico do processo de Conquista e expansão dos portugueses no além mar.
A própria ideia de inserção dos indígenas não chega a ser surpreendente. Como destacou o historiador Stuart Schwartz, os índios sempre se mostraram importantes em diversos momentos da colonização, embora a utilidade deles para os portugueses tenha sido mais evidente quando o nível do assentamento colonial era baixo. Mas essa incorporação dos indígenas dependia também do enquadramento dos mesmos dentro dos pressupostos religiosos cristãos e civilizacionais portugueses. Mais do que se tornarem súditos úteis à Coroa portuguesa, os índios precisavam ser guiados para uma transformação social e cultural por meio da conversão.
Por mais de dois séculos, a aldeia foi o espaço privilegiado para que esta transformação ocorresse. Nos aldeamentos, eles vivenciavam uma ampla ressocialização e metamorfoses, para fazer referência a um termo usado pela historiadora Maria Regina Celestino. Tudo isso se dava a partir da administração e supervisão dos missionários. Encarregados da tutela dos índios aldeados, os membros das ordens religiosas se esforçavam para fazer valer as máximas do projeto colonial: transformá-los em súditos cristãos e úteis aos propósitos da colonização.
O interessante quanto a isso é que esta lógica derivada do projeto colonial resultou em dicotomias que classificavam os índios e que inclusive eram reforçadas pela legislação da época. De um lado havia o índio manso, do litoral e falante do Tupi, que se enquadrava na ordem colonial pelos aldeamentos; e do outro o índio bravio, associado ao sertão, aos Tapuias, que resiste à presença dos europeus e está sujeito à Guerra Justa, bem como à escravização.
Como pode ser percebido, a questão da tutela foi um elemento importante na construção destas diferenças. Não por acaso, eram aos tutelados que a legislação reservava ao menos alguns direitos. Embora estivessem sujeitos ao trabalho compulsório e à adequação aos padrões socioculturais portugueses, a condição de aldeados lhes davam algumas garantias, sobretudo a proteção em relação à escravidão e o direito a terra coletiva. Essa situação marca, porém, um aspecto importante sobre o assunto: a tutela quase sempre foi um elemento ambíguo, o qual garantia direitos, mas de forma condicionada, assistida, nunca de forma plena e autônoma. Apesar desta dicotomia “aldeamento-sertão”, a realidade dos indivíduos indígenas foi bem mais complexa do que se supõe, mesmo que a historiografia por vezes tenha se limitado a reproduzir tal dicotomia.
A este respeito, vale a pena evocar a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição, que vai justamente em outra direção, investigando os índios inseridos à sociedade colonial em vilas e freguesias, para além dos aldeamentos. Abordando a presença indígena no Recôncavo da Guanabara (na capitania do Rio de Janeiro), a pesquisa contribui para a desconstrução da visão dicotômica mencionada outrora. O livro revela outras possibilidades de vida e de inserção dos índios no período colonial. Por meio de registros eclesiásticos referentes às freguesias do Recôncavo da Guanabara, o autor ressalta a existência de um contingente indígena que, assim como a população da região, era bem heterogêneo. Havia indivíduos foragidos de aldeias missionárias, índios capturados nos matos da região e até sujeitos que descendiam de indígenas que já viviam há algumas gerações no Recôncavo da Guanabara.
Mas o ponto que chama mais a atenção é que estes índios viviam uma situação indefinida quanto ao lugar social que ocupavam. Isso porque a legislação colonial era omissa quanto ao caso de índios não-tutelados, mas que engrossavam a massa de despossuídos nas vilas e freguesias. Como estes índios não possuíam os privilégios reservados aos aldeados, eles se viram diante do desafio de encontrar um lugar na sociedade hierárquica e escravista que predominava no mundo colonial. E isso se dava no cotidiano, nas relações estabelecidas com diferentes indivíduos, em uma correlação de forças que as colocavam entre a liberdade e a escravidão. Nesse sentido, fica claro que a ideia de tutela associada aos indígenas foi determinante na forma como os índios foram inseridos ou não à sociedade no Brasil.
Os aldeamentos mantiveram-se como o regime de tutela predominante no período colonial até meados do século XVIII, quando um novo contexto propiciou mudanças importantes. Neste período, as reformas administrativas estabelecidas pelo futuro Marquês de Pombal e as disputas territoriais nas fronteiras dos impérios português e espanhol conjugaram-se a um forte clima anti-jesuítico, uma vez que esta ordem religiosa passou a ser encarada como um Estado dentro do Estado. Não apenas pelas abundantes propriedades que acumulavam na América portuguesa, mas principalmente pelo poder que a tutela sobre as populações indígenas proporcionava.
Para dar conta desta nova realidade, foi estabelecida uma nova política indigenista, que foi consubstanciada em uma legislação conhecida como “Diretório dos Índios”. A partir dela, os missionários deixaram de se encarregar da administração dos índios, os quais foram considerados súditos indistintos da Coroa portuguesa.
A criação do Diretório, porém, não significou o fim da tutela em relação aos indígenas. Na verdade, substituiu-se uma por outra. Isso porque ficou estabelecido que os índios fossem tutelados pelos diretores, administradores laicos encarregados de colocar em prática a palavra de ordem desta legislação: a civilização dos índios. Influenciado pelo pensamento iluminista, o Diretório tinha a premissa básica de converter o índio de seu estado inculto, selvagem, à de homem civilizado, em uma perspectiva notadamente assimilacionista. Cabia aos diretores, então, civilizar os indígenas e conduzí-los à plena incorporação na sociedade colonial. Esse novo regime de tutela, portanto, passou a encarar a indianidade como uma condição transitória e em vias de extinção.
O Diretório não chegou a durar tanto tempo, sendo abolido oficialmente em 1798. Vários são os motivos que podem ser apontados como responsáveis pelo fracasso deste regime de tutela, mas um aspecto nos interessa diretamente aqui por estar ligado aos direitos dos índios. Ao negar a indianidade e pretender incorporar os índios indistintamente à população colonial, o Diretório negava também direitos tradicionais que os índios das aldeias possuíam, razão pela qual, em muitos casos, os índios lutaram para continuar sendo reconhecidos enquanto indígenas, indo contra a proposta assimilacionista do Diretório.
A Carta Régia de 1798 que extinguiu o Diretório não implicou na ausência de formas de tutela sobre os indígenas no período subsequente. Na verdade, mesmo abolido, diversos pressupostos do Diretório continuaram em prática na América portuguesa nos anos posteriores, de modo que o fantasma da tutela sobre os indígenas continuou existindo.
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.