Um Índio entre os Reis Magos: a influência da chegada à América na arte portuguesa

História em Rede
4 min readMay 22, 2020

Quando se pensa sobre a chegada dos portugueses ao território que hoje corresponde ao Brasil, algumas questões são evocadas de imediato por qualquer pessoa interessada em História. A dúvida quanto à viagem de Pedro Álvares Cabral, que aportou em terras americanas, é uma delas: fruto do acaso ou de um plano traçado previamente? A carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro documento oficial a abordar a terra brasilis, também intriga. Da mesma forma, a relação entre os portugueses recém-chegados e os povos nativos da América, dá margem a diferentes interpretações. No entanto, muito pouco se fala sobre o impacto imediato desses eventos para a compreensão dos contemporâneos. Afinal, como as notícias que vinham de terras até então desconhecidas influenciaram o pensamento dos portugueses?

Para responder a esta pergunta, vale a pena recorrer a um painel, elaborado entre os anos de 1501 e 1506. A pintura foi feita pelo artista português Vasco Fernandes, conhecido como Grão Vasco, para a catedral de Viseu. Ela foi encomendada pelo bispo D. Fernando de Miranda para compor o Retábulo da Sé de Viseu, o qual incluía dezoito pinturas que remetiam à Vida de Maria e à Paixão de Cristo. A imagem de Vasco Fernandes é uma representação da adoração dos Reis Magos ao menino Jesus, acompanhado de José e Maria, tema característico da arte deste período. Seria uma típica pintura religiosa renascentista se não contasse com um detalhe singular: no centro da figura, ao invés do rei mago Baltazar, está um índio brasílico. Trata-se de uma das primeiras representações de um nativo do atual Brasil na arte ocidental. Mas quais são os significados por trás dessa obra?

Em primeiro lugar, é importante refletir sobre a presença dessa figura indígena, situada bem no centro do painel. Por mais que a intenção prioritária do artista fosse representar a adoração dos reis magos, este é o detalhe que mais chama a atenção. Neste sentido, é difícil não associar o rei mago indígena às novidades que chegavam a respeito das expedições marítimas portuguesas. O índio em evidência, substituto de Baltazar, aparece como um representante dos povos das terras além mar, recém contatadas pelos portugueses. Não parece ter sido por acaso, inclusive, que ele seja justamente o substituto do rei mago negro: a cor de pele mais escura foi desde o início associada aos habitantes do Novo Mundo. Se a presença deste inusitado rei mago é perceptível, as vestimentas que este indígena utiliza também se notabilizam, sobretudo pela mistura de elementos europeus e ameríndios. Por um lado, ele utiliza camisa e calções, cobrindo a nudez tão relatada quanto aos nativos e que espantava os europeus. Para uma obra com conotação religiosa, a nudez não seria adequada ou tolerada. Por outro lado, ele usa diversos adereços pertinentes à cultura indígena, como um cocar de penas, uma flecha Tupinambá e uma espécie de taça confeccionada a partir da casca de coco, os quais denotam o exotismo associado a estes povos. Estamos diante de uma idealização do índio a partir das referências sobre estes povos que repercutiam entre os portugueses.

A temática religiosa, aliás, também expressa um significado que sugere a repercussão da chegada dos portugueses ao Novo Mundo. O propósito de cristianizar os habitantes destas terras emergiu como um importante propósito da empreitada expansionista portuguesa. O próprio relato de Pero Vaz de Caminha pontuava a boa disposição dos ameríndios para a cristianização. Neste caso, a adoração do índio ao menino Jesus, oferecendo-lhe um presente tal qual um rei mago, indica o reconhecimento de Cristo como o “rei dos reis”, o Messias de todos os povos, até mesmo os que estavam além mar. Por outro lado, a moeda dourada que o menino Jesus segura em uma das mãos provavelmente aponta para um interesse mundano, bem distante do ideal religioso, mas condizente com a influência do achamento português: a expectativa de encontrar riquezas e metais preciosos no Novo Mundo. Contudo, como a colonização posteriormente evidenciou, o projeto português teve como grande marca a conciliação destes dois interesses: o da expansão da fé cristã e o da exploração das riquezas ultramarinas.

A pintura de Vasco Fernandes, confeccionada apenas alguns anos após a chegada dos portugueses à América, permite observar que mesmo diante das adversidades de comunicação condizentes a este período, a circulação de informações sobre as novas terras foi relevante o suficiente para repercutir sobre os conterrâneos de Pedro Álvares Cabral. Mais do que isso, as referências do Novo Mundo influenciaram o pensamento e o imaginário destas pessoas. E a arte não deixa dúvida quanto a isso.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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