Uma Tragédia Francesa: colaboracionismo e resistência na França de Vichy

História em Rede
17 min readJan 31, 2020

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Em “Uma Tragédia Francesa”, Tzvetan Todorov fornece uma importante contribuição para que tenhamos uma melhor compreensão da história da França. Buscando desfazer certos mitos que envolvem a memória a respeito da resistência francesa à ocupação nazista, o autor parte de um evento específico, ocorrido no município de Saint-Amand-Montrond, como ponto de partida para uma abordagem mais abrangente. Nesse sentido, Todorov se vale da guerra civil ocorrida no verão de 1944 em Saint-Amand-Montrond, uma pequena municipalidade de cerca de 10 mil habitantes, como fio condutor da narrativa. As grandes preocupações que orientam suas discussões, voltadas para a complexa ocupação nazista na França, giram em torno dos conceitos de Resistência e de memória, bem como o comportamento das pessoas em uma época tão conflituosa quanto essa.

Antes de discorrer sobre a análise de Todorov, vale a pena contextualizar a situação francesa durante a Segunda Guerra Mundial, época na qual os eventos de Saint-Amand transcorrem. Derrotada pelos alemães logo no início da guerra, a França foi ocupada pelos nazistas em 1940, ano em que os franceses se renderam. O Marechal Pétain, herói francês da Primeira Guerra Mundial e principal autoridade do país neste momento, foi um dos principais defensores do armistício e logo se alinhou com os nazistas. Incentivando a colaboração dos franceses em relação à Alemanha, o que veio a ser conhecido como “colaboracionismo”, Petáin tornou-se a principal figura política da França de Vichy, governo francês estabelecido na parte sul da França Metropolitana. A região, com capital em Vichy, embora não estivesse sob ocupação nazista, mantinha-se na prática como um Estado satélite da Alemanha. Contrapondo-se à submissão do Estado francês aos alemães, foi criada a Resistência, grupos que lutavam clandestinamente contra a dominação nazista. Refletindo a complexa situação gerada pela derrota francesa e pelo alinhamento com os nazistas, foi estabelecida a “Milícia Francesa”, organização paramilitar criada pelo Estado de Vichy que visava eliminar os resistentes, considerados como “terroristas” pelos milicianos. Notadamente autoritária, fascista, antisemita e anticomunista, a “Milícia Francesa” representava a parcela da população francesa que se identificava com os princípios defendidos pela França de Vichy e, por conseguinte, pela Alemanha nazista. É nesse contexto intrincado que os eventos analisados por Todorov se inserem.

Logo nas primeiras páginas, Todorov se esforça para mostrar, mesmo que resumidamente, a organização da Resistência no período em questão. Quando se lê tal descrição, a impressão que fica é de afogar-se em nomes. O autor detalha rapidamente alguns desses grupos e os divide em dois ramos principais: os comunistas e os não-comunistas. No entanto, ele não deixa de reconhecer que a realidade era muito mais complexa do que a simplificação que pretende. Ao apresentar a situação dos resistentes, Todorov chama a atenção para um importante aspecto, que é o da heterogeneidade da Resistência. Essa idéia vai justamente contra a memória construída ao longo dos anos que caracteriza o movimento como singular, algo incontestável na França durante muito tempo.

Essa representação do passado, de que a Resistência foi um bloco monolítico e homogêneo, vem sendo contestada e desconstruída por uma nova perspectiva historiográfica que tende a uma análise menos preocupada com a recuperação de uma verdade perfeita dos fatos, encarando a memória não tanto pelo que foi dito, mas por como foi dito. Admitindo então a pluralidade, fica bastante claro que os diferentes grupos possuíam interesses próprios e orientações distintas, algo que podemos pressupor mesmo quando houve a integração entre eles, em 1944. Essa reunião, fruto de circunstâncias imediatas e negociações que visavam a congregação para combater o inimigo comum, deve ser entendida não como uma fusão das respectivas unidades, mas como um acordo de cooperação, já que as diferenças que haviam entre os grupos não foram apagadas. No caso de Saint-Amand, isso pode ser percebido na ausência de um comando central, de forma que, como bem destaca Todorov, “cada qual [os resistentes] dirige-se espontaneamente aos chefes que conhece”.

A idéia de uma rede de cooperação também se verifica no fato dos resistentes manterem sua identificação com os seus respectivos grupos, além do fato de se encarregarem de ações específicas, como quando, em dado momento da insurreição dos resistentes em Saint-Amand, coube a um grupo do Combat a execução do chamado Plano Verde. Além do mais, as referidas organizações possuíam diferenças ideológicas fundamentais, refutando qualquer idéia de unidade. Vale destacar então que tal heterogeneidade dificultou a coesão e a conjugação de ações entre as distintas localidades, até porque as diferenças não se resumiam aos próprios grupos, mas também as diferentes localidades, o que poderia resultar, como ocorreu em Saint-Armand, em ações isoladas.

Na cidade que é o cenário principal de “Uma Tragédia Francesa”, a insurreição e a posterior ocupação da cidade não resultou, ao contrário do que se supunha, em incentivo suficiente para que as demais cidades da região fizessem o mesmo: “no Cher, nem Bourgesnem tampouco Vierzon se mexeram, o Allier vizinho a Moulins e Montluçon continuaram calmos”, negando, mais uma vez, uma suposta homogeneidade.

Ainda sobre a Resistência, um outro ponto que fica evidente ao longo da obra, e que novamente se opõe a memória, é o fato dela não ser mero braço da Resistência exterior, ainda mais quando consideramos que a direção militar da Resistência interna estava nas mãos dos comunistas a partir de 1944, que buscaram sempre resguardar certa liberdade para ter iniciativas próprias. Não se pode negar que os resistentes mantinham-se atentos às recomendações do exterior via rádio, como estiveram ao pronunciamento de De Gaulle, e que a partir de 1943 começou a haver maior articulação entre a Resistência externa e a interna; mas até pela distância e os múltiplos interesses envolvidos, as ações internas não eram meras respostas aos ditames de Londres ou de Argel. A atitude dos resistentes em Saint-Amand é emblemática nesse sentido: pelo rádio, o general orientou que a ação interna deveria ser conjugada à dos exércitos aliados. Mas não foi o que ocorreu: os resistentes convocaram uma insurreição antes que houvesse chance para tal cooperação, movidos justamente pelos interesses particulares dos chefes da resistência, como bem mostra Todorov.

Se o episódio de Saint-Amand é esclarecedor quanto a essa visão tradicional da Resistência, também revela um dos aspectos mais interessantes que se percebe ao longo de “Uma Tragédia Francesa”, permitindo observar que os combates travados na França, ao contrário do que uma memória construída sobre Vichy leva a crer, de que os alemães eram os inimigos imediatos, o alvo dos resistentes franceses eram sim outros franceses. Na cidade, como bem destaca Todorov, “nunca houve realmente alemães”, de modo que, “o inimigo, ao mesmo tempo principal e imediato dos insurgentes de 6 de junho, não são os alemães”, mas sim os milicianos pró-alemães, que eram voluntários franceses, colocando em pé de guerra franceses contra franceses. O caso de Saint-Amand ilustra isso muito bem; quase o tempo todo na narrativa de Todorov, o conflito opõe franceses contra franceses, em meio a grande parte da população, transitando entre os dois lados. O massacre dos judeus ocorrido em Guerry também é emblemático: com participação direta dos milicianos, com destaque para figuras como Joseph Lécussan, fascista e anti-semita convicto, praticou-se um ato de profunda violência contra judeus em grande parte franceses. Tal situação nos permite afirmar sem nenhum exagero que havia na França desse período uma guerra civil, revelando então que a realidade foi muito mais complexa do que parece.

Tal situação não pode ser entendida quando ignoramos o contexto da França após a queda da República: Vichy não foi uma zona ocupada pelos alemães, como a maior parte da Europa e parte da própria França. É interessante perceber a passividade dos franceses durante os anos imediatos após a derrota, com os anos situados entre 1940 e 1942 caracterizados por uma ausência de reação. Em meio a asse atordoamento da própria sociedade, o Marechal Petáin, assumindo o posto de herói nacional, busca dar novos rumos ao país, lançando bases para o que ficou conhecido como Revolução Nacional. Ideologicamente alinhada com o nazismo, o movimento defendia que não foram os alemães ou a fraqueza do exército que fez com que a França perdesse a guerra, mas sim os pecados dos próprios franceses, sendo, portanto, culpa deles próprios. A derrota então foi uma forma de expiar os pecados e de regenerar a França, constituindo a oportunidade de originar um novo homem, idéia tão típica tanto de regimes de extrema direita quanto de extrema esquerda. O novo homem estaria livre dos valores tradicionais, com forte recorrência ao nacionalismo, ao antisemitismo, anticomunismo, xenofobia e hostilidades à democracia parlamentar, além do reforço aos valores católicos, valores ligados diretamente ao nazismo. No bojo da “Revolução Nacional”, pregava-se uma “França Eterna”, onde os deveres deveriam ser maiores que os direitos, de modo que imperasse a ordem em detrimento das reivindicações. Considerando a relativa autonomia de Vichy, mas ainda assim uma autonomia, nos damos conta que as idéias da referida revolução não foram impostas ao governo francês, mas foram iniciativas próprias.

O mesmo pode se dizer de certas medidas adotadas pelo próprio governo, como a criação de tribunais de ordens com “seções especiais”, impedindo apelações das condenações a fim de atingir diretamente os resistentes, e a contribuição voluntária dos franceses na perseguição aos judeus, com a polícia francesa tendo papel fundamental nas detenções no Vélodrome d’hiver, por exemplo. Entretanto, não devemos entender Vichy unicamente como produto do Estado. Na verdade, corroborando com a posição do historiador francês Pierre Laborie, é a passividade da própria sociedade francesa que produziu tal situação, abrindo as portas para o Estado de Vichy. Ou seja, não podemos entender tal situação como algo imposto de cima para baixo; novamente recorrendo a Laborie, a opinião pública que se formou é fruto do contexto, revelando o significado da espera, o chamado Attentism. Portanto, se o governo de Vichy muito colaborou com os alemães, e de forma voluntária, isso deve ser entendido a partir da própria sociedade francesa, considerando a sua passividade.

Essa discussão, invariavelmente, acaba por remeter a outra, também elucidada pelo ocorrido em Saint-Amand, que é o fato da dinâmica dos acontecimentos refutarem completamente uma memória construída na França a partir do discurso do general Charles de Gaulle. O discurso do general considerava a França como vítima e os franceses como bravos resistentes. Quando nos damos conta da forte presença e atuação dos milicianos pró-alemães isso logo cai por terra. A trajetória de seus membros nos dão bem a idéia de que a integração a milícia não só era voluntária, como também pressupunha a assimilação de diversos dos valores difundidos no bojo da Revolução Nacional de Pétain e que tanto se afinavam com os nazistas. Isso pode ser muito bem visto na trajetória de Francis Bout de l’An: após ter sido um militante comunista, ele acaba convertendo-se em fascista depois de uma visita à URSS; quando volta à França “vai estar, em 1943, entre os fundadores da milícia, assumindo aí uma posição ultracolaboracionista”, tendo como grande sonho “a criação de um grande partido nazista, do qual a milícia será o núcleo armado”. Ou seja, longe de ser desprezível, as milícias francesas pró-alemães eram “uma das únicas forças incontestes” em meio a insegurança crescente na França de Vichy.

Apenas isso já seria suficiente para contestar uma imagem de resistência que é tão forte na memória coletiva, mas Todorov, ao tentar reconstituir o que houve em Saint-Amand faz mais do que isso, indo além dicotomias simplificadoras que tanto limitam a compreensão da realidade, opondo resistentes de um lado e colaboracionistas do outro. A análise atenta que empreende o leva a perceber uma grande maioria que, hesitando em tomar partido, transitava de um lado para outro, agindo de acordo com a situação e as circunstâncias. Essa perspectiva muito se aproxima com a do historiador Pierre Laborie, que se refere a isso como uma “zona cinzenta”, sendo praticamente impossível tentar enquadrar tais comportamentos em alguma posição, já que tinham ações que por vezes os aproximavam de um lado e por vezes do outro. Assim como Laborie, Todorov parece estar atento para um aspecto importante no trabalho do historiador, que é mais do que separar e destacar as contradições inerentes às pessoas e às sociedades, mas também tentar entender como essas oposições coexistem nas mesmas. Ou seja, o historiador deve atentar para as chamadas ambivalências, o que muito ajuda a elucidar a análise de realidades com as de Vichy, em que as dicotomias impedem a percepção da complexidade e acabam por emitir juízos de valor.

Em Saint-Amand, a ambigüidade de grande parte das pessoas pode ser percebida no momento em que os resistentes conduzem seus prisioneiros para fora da prefeitura: a população que está assistindo a tudo, vaia esses prisioneiros, com o intuito de “demonstrar que sabe reconhecer quem é bom e quem é mau” para si mesmo e para os outros, em uma tardia tentativa “de recuperar os quatro anos perdidos de inércia que se passaram desde a derrota”, transitando entre a colaboração indireta, isto é, a indiferença frente a sucessão dos acontecimentos, e a simpatia às ações dos resistentes. No entanto, pouco depois isso se desfaz: quando ficam sabendo de uma possível represália alemã, a multidão que apoiava e “falavam orgulhosamente de sua vitória”, volta de imediato para casa para não se comprometerem junto aos alemães. Neste sentido, o camponês Camille Guillemin é uma figura emblemática quanto a alguém presente nesta “zona cinzenta”: ao mesmo tempo em que ele, ao longo dos anos, não parece ter tido qualquer ação com o intuito de subverter aquela situação, o que, definitivamente, não o classifica como um resistente, o seu ato em relação à Krameisen, um judeu, o abrigando por tempo necessário para a sua recuperação, mesmo diante dos riscos que corria em virtude dessa atitude, mostra o quanto a rigidez das categorias “resistente” e “colaboracionista” não se dá na realidade. Fica novamente perceptível então o quanto isso era relativo, já que as pessoas, embora imersas na maioria das vezes na inércia e na indiferença, poderiam ter atos que as aproximavam de um lado ou de outro, mas nem por isso permite que elas sejam consideradas unicamente em um dos lados, tendo maior entendimento quando percebida em meio a referida “zona cinzenta”.

Um ponto muito bem explorado por Todorov em “Uma Tragédia Francesa” está relacionado à forma como várias das pessoas diretamente envolvidas no episódio apresentado por ele se relacionam com a memória sobre esses eventos. Nas entrevistas que faz com os protagonistas do que o autor intitula uma verdadeira tragédia, fica evidente que a sujeição do presente ao passado nessas pessoas. A memória é preservada de forma intransitiva, de maneira que o ressentimento é uma constante na vida dessas pessoas, caracterizando um tipo de leitura do passado chamada pelo próprio autor de memória literal em seu livro “Os Abusos da Memória”. Essa relação traumática é perceptível em vários depoimentos: em um deles, um antigo resistente se recusa a falar do passado: “Não estou de acordo. Não posso admitir isso. Não gosto de contá-lo. Doloroso. Doloroso. Doloroso”. Diante da lembrança de um acontecimento tão marcante negativamente, o silêncio torna-se o único caminho para conter o sofrimento que é falar e lembrar do que se passou. Há outros que preferem esquecer o ocorrido, deixando a entender, como afirma Proust, que o esquecimento é uma forma de se adaptar a realidade e aliviar a consciência para sobreviver a um passado doloroso: “Mesmo se eu soubesse de alguma coisa, não lhe diria... Toda verdade não é boa de se dizer, mesmo cinqüenta anos depois”. Em alguns casos, entretanto, a dor foi tamanha que levou a sujeição do presente ao passado de tal forma que resultou na perda da noção da realidade, como foi com Kremeisen, que sobreviveu ao massacre aos judeus ocorridos em Guerry e acabou em um hospício, ou em atitudes extremas, como Chaillaud, que cometeu suicídio. O caso de ex-milicianos e indiferentes da véspera também chama atenção: com a queda de Vichy, muitos deles participaram das comemorações aos resistentes como se eles próprios tivessem agido dessa forma. Isso remete a um aspecto da memória que Todorov já havia destacado em seu livro “Os Abusos da Memória”, que é o seu caráter seletivo: considerando-a enquanto uma construção social, o autor destaca que ela passa necessariamente por uma seleção em que se dá uma interação constante entre a conservação, possivelmente de determinados fatos do passado que se pretende consagrar, e o esquecimento, de outros talvez comprometedores, adequando-a então as necessidades do presente. O que se percebe então é que esses falsos resistentes se apropriaram de uma memória que passa a ter grande validade coletivamente a partir do discurso de Charles de Gaulle, que tomava a França como vítima e os franceses como bravos resistentes. É impossível então não levar em conta a reciprocidade desse discurso, que funcionou não apenas para reavivar a identidade nacional francesa, mas também como uma terapia coletiva aos próprios colaboracionistas e os indefinidos, aliviando a consciência e servindo de pretexto para se afirmarem como resistentes.

Essa característica também é elucidativa para entender o esquecimento do grande massacre contra os judeus nos poços de Guerry. Embora seja difícil dar respostas definitivas, é impossível não relacionar o esquecimento do episódio ocorrido em Saint Amand com a construção de uma memória que visava apagar a participação de franceses em atrocidades de tal tipo, o que, invariavelmente, remetia a casos de colaboração com os alemães e aproximação com ideais fascistas, indo totalmente contra a imagem de uma França resistente e vitimizada que se buscava consolidar.

Por fim, vale a pena entrar na discussão conceitual a respeito da definição de resistência. Ao longo das páginas, Todorov expõe sua concepção, ficando bastante claro que para ele resistência deve envolver uma ação que parte da recusa em “apenas esperar que as coisas se arranjem por si mesmas e o vento as modifique”, e que visa transgredir uma dada situação, procurando então “transformar a ordem social”. Isso acaba por implicar então que ela deve ser consciente e carregar um sentido, além de pressupor o sacrifício caso este seja necessário. Neste ponto, sua perspectiva muito se aproxima do conceito usado pelo historiador Pierre Laborie, que vê a resistência em termos semelhantes. No entanto, Todorov diferencia-se deste por dar grande valor a personagens que, embora não considere como resistentes, considera como heróis. A diferença básica destes para com os resistentes se relaciona ao fato de suas ações, embora com boas intenções, tenham sido isoladas e não tinham como fim transformar a ordem social. Esse seria o caso de indivíduos como o prefeito Sadrin e o Monsenhor Lefebvre, que tentam evitar que o pior aconteça em uma negociação por reféns, chegando ao ponto de se oferecerem como reféns caso necessário; o já citado Camille Guillemin, que abriga o judeu Kameisen, e as mães judias que negaram ter filhos para salvar a vida de suas crianças. Para ele no entanto, havia uma moral diferente que movia esses indivíduos: suas ações derivavam sobretudo da preocupação que tinham com o próximo, de maneira que para eles a dignidade dos seres humanos “são superiores aos programas políticos, sejam eles quais forem”. Essa se opõe completamente a chamada moral do sacrifício, a qual, por mais contraditório que possa parecer, orientava igualmente resistentes e colaboracionistas: ela subentende que “a redenção exige sacrifício, que a morte do indivíduo é benéfica, isto é, indispensável à sobrevivência da comunidade”, tendo uma versão sinistra, através da escolha de um bode expiatório, e sua versão heróica, que consiste no próprio sacrifício. Ou seja, esses homens, embora tendo diferenças fundamentais, aproximavam-se quanto ao fato de colocarem ideais abstratos acima das vidas humanas.

É interessante perceber que Todorov, embora seja criterioso e não estenda seu conceito de resistência de maneira ampla, como faz, por exemplo, o historiador francês Semelin, possui a particularidade de alçar aqueles que, segundo sua visão, compartilham de uma moral humanitária e de preocupação ao próximo, ao posto de grandes heróis. Ele dá a entender que essas pessoas são mais importantes, admitindo que é a presença deles no trágico episódio relatado “que lança algumas luzes de esperança”, e movidos por intenções mais nobres e indispensáveis, considerando que “as comunidades humanas têm necessidade de portadores dessas virtudes humildes e cotidianas” ao longo de toda a sua existência, do que os resistentes.

Particularmente, considero que Todorov empolgou-se um pouco em seu idealismo, não atentando para algo que todo o episódio de Saint-Amand deixa claro e que já destacamos aqui, que é a ambigüidade da maior parte das pessoas que viviam em uma realidade instável e complexa como a da França de Vichy, com sua argumentação possuindo um grande viés moralista. A impressão que fica é que ele acaba por fazer juízos de valores, justamente por considerar aqueles que fizeram gestos humanitários como mais importantes do que os resistentes, sendo estes últimos vistos praticamente como um mal necessário. Portanto é exagerado considerar Guillemin, por exemplo, como um herói, por mais louvável que tenha sido seu ato; a ajuda que prestou ao judeu agonizante, abrigando-o em sua propriedade inegavelmente foi um ato de compaixão em uma situação extrema, mas é muito perigoso julgar alguém como um herói, ou mesmo resistente, colaborador ou o que quer que seja, apenas por um ato. Outro ponto que discordo em relação a Todorov é o fato dele, embora reconheça que este seja um ponto que diferencia os resistentes dos seus heróis, é de não ter dado a devida importância ao fato da Resistência, ao contrário dos louváveis gestos isolados de Guillemin, do prefeito Sadrin e dos outros, visavam a mobilização. Além disso, acredito que é muito difícil trabalhar com uma categoria como a de “herói”, que acaba por sacralizar as pessoas e escamotear determinados fatos; assim, se há certa secundarização da vida das pessoas em nome dos ideais políticos, há também nobreza na ação dos resistentes em se sacrificarem. O mesmo pode ser dito aos heróis de Todorov: embora coloquem esses princípios humanitários acima de qualquer programa político, eles foram também cúmplices da situação que se criou pelo fato de não terem contestado a mesma. Portanto, acredito que Todorov acaba sendo um tanto idealista e vacila no final: embora ele atente para a ambivalência no caso da grande maioria dos moradores de Saintr-Amand, que em um momento apóiam os resistentes e em outro fogem quando os alemães são avistados, sua visão moralista o impede de destacar a mesma ambivalência em personagens como Sadrin, Guillemin e Lefebvre.

Como foi possível perceber ao longo deste artigo, o caso apresentado por Todorov em “Uma Tragédia Francesa” são importantes por nos fazer pensar a respeito de diversos aspectos. Como bem lembrou Henry Rousso, tão instigante quanto entender como uma minoria foi capaz de fazer atrocidades tão grandes, é entender como a maioria se comportou tão passivamente. É a partir dessa perspectiva que eventos como o de Saint-Amand podem ser vistos de uma outra maneira, desfazendo diversos mitos que ainda teimam em resistir, nos permitindo descobrir uma série de situações distintas que vão além de um mundo em preto e branco.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.

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