Xeque-Mate: um Torneio de Xadrez na Corte do Rei Felipe II
Madri, 1575. Capital de um dos maiores impérios da História. Sob o domínio dos Habsburgos, a Coroa espanhola estendia seu poder aos quatro cantos do mundo. Do México às Filipinas, arquipélago asiático que foi assim denominado em homenagem ao rei Felipe II, a Espanha fazia justiça ao título de “Império onde o Sol não se põe”. Na Corte madrilenha, que vivia dias de opulência em virtude das riquezas extraídas dos territórios ultramarinos, os nobres disputavam a preferência do monarca em busca de favores e mercês. A atenção do soberano, porém, passava longe das intrigas cortesãs. Felipe II estava mais interessado no torneio de xadrez organizado por ele e que acontecia justamente em sua Corte.
O rei da Espanha era um entusiasta do jogo, mas é bem verdade que o xadrez já possuía uma longa história na região antes do torneio de 1575. Os primórdios remetem à invasão árabe na Península Ibérica, quando os recém-chegados introduziram o Xatranje, um dos precursores do xadrez. O Xatranje, derivado de um jogo indiano, popularizou-se rapidamente no mundo islâmico. O tabuleiro e as regras eram muito semelhantes aos do xadrez, embora houvessem algumas variações quanto à disposição das peças e aos movimentos que elas faziam. Além disso, as representações das peças eram diferentes: no lugar do bispo, elefantes, ao invés da dama, o firz ou conselheiro.
O Xatranje difundiu-se pela Península Ibérica ao longo da Idade Média e contribuiu decisivamente para o surgimento do xadrez, servindo como base para o desenvolvimento do jogo. Não por acaso, as peças de xadrez mais antigas encontradas na Europa foram localizadas em uma cidade espanhola. As “Peças de Áger”, produzidas em cristal, pertenceram ao conde Arnau Mir de Tost e foram legadas à Igreja de Santo Egídio, da cidade de Áger, em 1058 por meio de um testamento. As peças evidenciam a influência árabe em seu formato, contando ainda com o firz, que anos depois seria substituído pela dama ou rainha. O material utilizado, possivelmente de origem egípcia, também sugere a influência estrangeira. Apesar disso, as “Peças de Áger” indicam a relevância que o jogo adquiriu na Península Ibérica, sobretudo nos círculos da nobreza.
A difusão do xadrez na região pode ser atestada ainda por um livro. O “Libro de los Juegos”, de 1283, foi o primeiro a descrever vários jogos praticados entre os ibéricos, dentre eles o xadrez. E a predileção monárquica pelo jogo mais uma vez é notável. Isso porque o livro foi encomendado pelo rei Afonso X, de Leão e Castela. O livro de 98 páginas, que atualmente encontra-se na biblioteca San Lorenzo del Escorial, é um dos documentos mais importantes para se estudar a História dos jogos de tabuleiro.
O xadrez continuou a avançar nos séculos seguintes entre os ibéricos, mantendo-se como alvo de estudos. E foi na Espanha, em 1497, que foi publicado o primeiro tratado impresso sobre o jogo: “Repetición de amores y arte de ajedrez”. O autor, Luis Ramírez de Lucena, estudou na Universidade de Salamanca, apresentando diferentes jogadas e análises em seu ensaio.
Diante dessa rica trajetória, não surpreende, portanto, o interesse do rei Felipe II pelo xadrez. O jogo já era uma prática consolidada na Espanha. A grande novidade, porém, era a realização de um torneio. Este foi o primeiro do tipo a ser documentado. É provável que outras competições tenham sido realizadas anteriormente, mas nenhuma teve a dimensão do torneio de 1575. O rei reuniu os melhores jogadores de sua época e decidiu premiar o campeão. Quatro jogadores famosos foram convidados: os espanhóis Ruy López de Segura e Alfonso Cerón; e os italianos Paolo Boi e Geovanni Leonardo di Bona. Mas, afinal, quem eram eles?
Paolo Boi nasceu no ano de 1528 em Siracusa, atual Itália, e era proveniente de uma família abastada. Um talento do xadrez desde a mocidade, Boi despertou a admiração do Papa Pio V e de diversos duques da Itália por suas jogadas. Durante alguns anos, ele esteve entre os favoritos do Duque de Urbino, recebendo honorários de 300 escudos anuais. A sua trajetória é um bom exemplo de que ser um notável enxadrista era um caminho possível para alcançar uma posição favorável no contexto do Antigo Regime.
Alfonso Cerón era outro jogador afamado em sua época. Ele nasceu na região de Granada, em 1535, e era parte do clero católico. Frequentando o círculo cortesão espanhol em virtude de suas habilidades como enxadrista, Cerón era tido como um dos melhores da Espanha. Era também um estudioso do jogo, tendo escrito uma obra sobre xadrez chamada De latrunculorum ludo o Del juego del Ajedrez.
De Cutro, cidade localizada na região da Calábria, veio Giovanni Leonardo di Bona (ou da Cutri, como também é mencionado), outro mestre do xadrez. O mais jovem dos competidores, contando 23 anos na data do torneio, Leonardo di Bona havia estudado direito em Roma. Embora não tivesse tanta experiência quanto os demais, ele passou dois anos praticando e aprendendo xadrez com Paulo Boi. Um caso curioso envolvendo suas habilidades de xadrez deu-se quando o seu irmão foi capturado por piratas sarracenos. Segundo se sabe, Leonardo jogou uma partida de xadrez com o líder dos piratas valendo a liberdade de seu familiar. Ele teria não só vencido e resgatado o irmão, como também ganhou 200 ducados apostados pelo pirata.
O grande favorito a vencer o torneio, porém, era o espanhol Ruy López de Segura. Natural de Zafra, na região espanhola de Badajoz, Segura era considerado o melhor jogador de xadrez da Europa. Ele possuía 35 anos de idade quando participou do torneio do rei Felipe II, mas sua experiência de vida parecia muito mais vasta. Oriundo de uma família de mercadores, Segura foi ordenado padre e atuou durante um tempo na paróquia de Zafra. Logo passou à Corte de Felipe II, tornando-se confessor e conselheiro régio. Mas a sua grande paixão era o xadrez. Praticante do jogo desde a juventude, Ruy López de Segura rapidamente se destacou no xadrez. Sua fama como melhor jogador de sua época se deveu em grande parte às vitórias acumuladas contra jogadores italianos, grandes referências do jogo no século XVI. Em 1560 e 1573, quando esteve em Roma em virtude de suas funções religiosas, Segura derrotou os melhores enxadristas italianos, consolidando sua reputação. Ele, inclusive, venceu as duas partidas que disputou com Leonardo di Bona. Segura destacou-se ainda como intelectual e humanista, escrevendo uma obra sobre gramática. Foi ainda um importante teórico do estudo sobre o xadrez, publicando em 1561 o tratado intitulado Libro de la invención liberal y arte del juego del ajedrez, muy útil y provechosa para los que de nuevo quisieren aprender a jugarlo, como para los que ya lo saben jugar. Descrevendo estratégias e analisando o jogo, Segura difundiu uma jogada que acabaria recebendo o seu nome muitos anos depois: a Abertura Ruy López, também conhecida como Abertura Espanhola. Foi ainda um praticante notável do xadrez às cegas, variação na qual os jogadores não podem ver o tabuleiro. Com uma trajetória tão impressionante no xadrez, Segura era bem quisto pelo rei Felipe II, recebendo honrarias por seu talento.
Reunidos os competidores, o torneio foi finalmente realizado em 1575. Acompanhado de perto pela Corte, o resultado final foi surpreendente, contrariando os prognósticos. O grande favorito, Ruy López, acabou derrotado por Giovanni di Bona, que se sagraria campeão do torneio. A derrota não abalou o renome de Ruy López, mas alçou di Bonna à posição de melhor jogador da Europa. E a conquista não trouxe apenas fama. Giovanni Leonardo foi agraciado por Felipe II com prêmios e honrarias. Ele recebeu 1000 ducados, uma capa de arminho e sua cidade natal, Cutro, então parte do Império espanhol, ficou isenta de impostos por 20 anos. A localidade celebrizou-se como a “cidade do xadrez”, confirmando o sucesso de Giovanni.
Enfim, o torneio de xadrez realizado em 1575 é um caso emblemático que aponta para a popularidade do jogo entre os europeus no início da Idade Moderna. Tendo se desenvolvido ao longo da Idade Média, o xadrez, mais do que um jogo, configurou-se como um meio de ascensão social para os jogadores mais notáveis. Graças ao apreço que o jogo tinha no meio régio e aristocrático, era possível alcançar concessões, favores ou cargos. Até por isso, o xadrez constitui uma relevante prática lúdica a partir da qual é possível compreender a sociedade do Antigo Regime. Centrada na figura do rei, que possuía grande autoridade sobre a vida pública, tal sociedade estava ordenada em uma estrutura hierárquica baseada em privilégios. Quanto mais próximo do monarca, mais favorecido era o grupo social ou o indivíduo. E, neste sentido, o xadrez foi um caminho importante para que vários de seus praticantes se aproximassem tanto do rei, quanto de sua corte. Como em um tabuleiro de xadrez, a sociedade do Antigo Regime era dependente do rei, sendo ele a peça mais importante em jogo.
Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição.